Sharon Delgado, Mestre em Educação
Jacksonville Elementary School, Baltimore County, Maryland
ESPECIALISTA EM LEITURA
Em seu influente artigo em que descrevia o “Efeito Matthew”, Stanovich (1986) explicou que as crianças que não conseguem compreender e aplicar as características fonológicas da linguagem já começam mal em leitura e, a menos que haja uma rápida intervenção, elas raramente superam isso. Primeiros passos firmes são importantes. As habilidades de reconhecimento de letras ensinadas no período pré-escolar são importantes pré-requisitos para o trabalho de identificação de palavras que se faz na primeira série e adiante.
Por definição, leitores adultos fluentes não se dão conta dos processos inconscientes que seus cérebros estão utilizando enquanto seus olhos se movem rapidamente pela página para extrair significado do texto. Muitos sistemas cognitivos estão em jogo. Os sistemas semântico e morfológico do leitor auiliam na compreensão do significado das palavras. O sistema sintático orienta o reconhecimento por parte do leitor das relações gramaticais entre as palavras. O sistema fonológico do leitor promove uma fluente decodificação das palavras (Wolf, 2007).
Leitores adultos fluentes podem ter-se esquecido de que a aquisição inicial das habilidades fonológicas realmente não foi tão fácil para eles quanto o ABC. O inglês é uma língua opaca. Embora haja apenas 26 letras no alfabeto inglês, essas letras são combinadas em uma infinidade de maneiras para soletrar seus 44 sons. É difícil aprender a ler e soletrar em inglês. Esperando tornar o ensino das letras e seus sons mais cativante e adequado à faixa etária, a maioria dos programas e professores da pré-escola insere a aprendizagem de fonemas e grafemas numa variedade de experiências de “aprender fazendo”. Na sua descrição de uma típica sala de aula do ensino fundamental, Neuman observou as muitas atividades multissensoriais que estavam sendo desenvolvidas durante uma “Semana do Nn”:
“Nos 55 minutos seguintes, estas crianças aprenderam a apointar, circular e sublinhar a letra N. Elas a recitaram, desenharam, e procuraram por ela na sala. Elas a ouviram, viram, até mesmo a sentiram, com a letra sendo desenhada nas suas costas pelos colegas. E depois de ficarem sentadas em círculo por um tempo que pareceu interminável, elas tiveram permissão para escolher desenhá-la, recortá-la ou moldar a massa de modelar no formato da letra” (Neuman, 2006).
Tradicionalmente, a maioria dos observadores aplaudiria essas atividades com diversão e lamentaria o longo tempo que as crianças passaram sentadas no grande círculo do grupo. Porém, após discutirem relatos de pesquisas das neurociências, professoras da pré-escola na Jacksonville Elementary School em Baltimore County, Maryland, decidiram não seguir os ecléticos métodos de leitura descritos acima e, em vez disso, optaram por tentar algo diferente. Elas decidiram ser um pouco menos multissensorial. Na pré-escola, isso foi uma quebra e tanto na tradição!
Algumas Descobertas da Pesquisa pela Neurociência
Estendendo suas bem conhecidas investigações das causas da dislexia, Sally e Bennett Shaywitz propuseram recentemente que problemas de atenção e deficiências fonológicas podem estar relacionadas com o insucesso do aluno em decodificar texto de forma automática e precisa (Shaywitz & Shaywitz, 2008).
Os Shaywitz referenciaram o trabalho de LaBerge & Samuels (1974), os quais desenvolveram uma teoria da leitura como processamento automático de informações. LaBerge & Samuels postularam que o leitor progredia através de uma série de estágios. Em cada estágio, o leitor deveria ser automático e preciso. Segundo esses pesquisadores, “a precisão ao ler uma letra ou palavra isolada é insuficiente como critério de prontidão para a próxima etapa…..parcela de atenção exigida deveria ser usada também como um critério para prontidão” para o estágio seguinte no continuum de habilidades fonológicas (LaBerge & Samuels 1974, Samuels, 1988).
Como evidência adicional de que a dislexia pode estar relacionada com problemas de atenção e deficiências fonológicas, os Shaywitz citam a “Teoria dos Exemplares” (Instance Theory) de Logan, a qual é um referencial para a aprendizagem. Logan aponta que, a fim de que se aprenda a decodificar, precisam ser formadas memórias episódicas iniciais. A atenção é crucial em cada um dos estágios do processo de formação da memória episódica . Estes incluem “codificação, representação do exemplar (uma memória) e recuperação”. Embora com o tempo a decodificação fluente se torne parte do sistema de memórias implícitas de um indivíduo, “exemplares” ou memórias dos elementos fonológicos individuais precisam primeiro ser formados episodicamente. Uma quebra na atenção durante qualquer um dos estágios could interferir na formação inicial das memórias episódicas base das correspondências fonema-grafema (Logan, 2002).
Outro grupo de pesquisadores, Sweller & Chandler em seu artigo “Why Some Material Is Difficult to Learn” (“Por que é difícil aprender certos conteúdos”) explicam que a aprendizagem torna-se difícil quando a carga cognitiva necessária para entender um material ou uma atividade torna-se pesada demais. Carga cognitiva refere-se à parcela da capacidade cognitiva ou memória de trabalho de um estudante que será necessária para que ele tenha êxito numa tarefa. Elas advertem que um efeito de “atenção dividida” pode interferir na aprendizagem se múltiplos elementos de informação são apresentados simultaneamente. Quando múltiplos elementos de informação interagem, a carga cognitiva do educando aumenta. Sweller & Chandler recomendam que os professores analisem os requisitos de carga cognitiva de tarefas de aprendizagem individual quando elaboram atividades didáticas (Sweller & Chandler, 1994).
Rompendo com a Tradição
A decisão das professoras da pré-escola de ser “menos multissensoriais” não foi recebida com tranquilidade. Entretanto, parecia que a cada mês de setembro[1] um contingente de ex-alunos da pré-escola começava a primeira série com uma compreensão muito fraca do código básico do alfabeto. Para atenuar isso, conforme recomendado por Sweller & Chandler, foi realizada uma avaliação dos métodos de ensino que estavam sendo utilizados.
O primeiro passo foi determinar exatamente o que está acontecendo no cérebro das crianças quando elas estão tentando dominar os princípios do alfabeto. Essencialmente, para aprender o “código básico”, as crianças simplesmente realizam a direta formação de memória por pares associados (McGuinness, 2004). Elas memorizam a imagem do símbolo de uma letra juntamente com o som de seu fonema correspondente. Para decodificar com exatidão uma palavra com ortografia regular, as crianças precisam ser capazes de reconhecer as letras enquanto evocam a memória dos sons correspondentes, os quais, quando combinados, produzem a palavra. É muito importante observar que para ler uma linha de texto com êxito, essa decodificação deve ser não apenas precisa, mas também automática.
Por que algo tão simples era tão difícil para algumas crianças? Proporcionando às crianças tantas atividades divertidas, estavam os professores distraindo-as da sua tarefa fundamental de aprendizagem, ou seja, a formação de estabelecer fortes correspondências entre as letras e sons? Considerando a “ Teoria dos Exemplares” de Logan, talvez a memória da simples ligação letra/som para “Nn & /n/” tenha sido perdida em meio a uma infinidade de atividades. As crianças se lembraram de modelar com a massinha os “Nn” e esqueceram o som do /n/? A atenção delas ficou “dividida”, como poderiam sugerir Sweller & Clay, em meio a uma multiplicidade de elementos de informação apresentados simultaneamente?
Refletindo sobre a teoria de LaBerge & Samuels, é evidente que leitores iniciantes que estão tendo dificuldades com o código básico não estão prontos para “prosseguir para as próximas etapas” no currículo. Essas crianças podem ser capazes de produzir os sons corretos quando as letras correspondentes são apresentadas, mas elas só conseguem fazer isso com prolongada atenção. Certamente, elas precisam ter fluência no código básico antes de enfrentar as vogais longas, vogais variantes e os outros padrões ortográficos complexos que são apresentados rapidamente na primeira série.
Mover-se para Aprender
Assim, em nossa escola, as professores da pré-escola passaram a acreditar que o automatismo era tão importante quanto a precisão. Para os alunos recuperarem da memória suas lembranças das relações simples letra/som de um modo “rápido, sem esforço e inconsciente”, decidiu-se que a parte da pré-codificação [up-front encoding] no trabalho com a memória das crianças tinha que ser ajustada.
Portanto, em vez de trazer blueberries[2] para os alunos provarem, figuras de palavras com Bb para verem, ou coisas que começam com “Bb” (como bears & balls) para segurarem, os professores destacaram um sentido sobre todos os outros como a principal pista para a memória – o movimento. A fórmula para ajudar as crianças a desenvolver memórias fortes e automáticas das correspondências fonema-grafema do código básico era simples: usar o movimento como a pista associativa para ligar uma letra a um som.
Uma Mudança na Pré-Codificação
grafema + movimento + fonema = Aprendizado Associativo Forte
A cada semana durante os dois primeiros meses de escola, três letras, sons e movimentos foram introduzidos aos alunos dentro do contexto de uma história simples. Porque o sistema da escola já usava uma abordagem fônica explícita e sistemática publicada, foram empregados movimentos e sequência da introdução das letras sugeridos no programa.
Por exemplo, a história simples que formava a memória episódica chave para as letras/sons/movimentos para “B, A, & C” era: One day while Sam was bouncing a ball (/b/), s/he heard the sound of a little lamb (/a/). The lamb was so cute that Sam got a camera and clicked a photo of it (/c/)[3].As letras, sons e movimentos apropriados para B, A e C acompanhavam a narrativa inicial e as múltiplas recontações dessa história.
Outros aspectos do programa publicado pela rede escolar perderam a ênfase. Por exemplo, folhas de exercícios foram consideradas menos adequadas para crianças de cinco anos. Como os professores queriam estimular o uso pelas crianças do seu processador fonológico, deu-se menos atenção a atividades voltadas para o processamento semântico e sintático. Essas atividades incluem procurar pela sala coisas que começam com Bb, usar palavras com Bb em frases, ou separar figuras que começam com Bb. De fato, as crianças muitas vezes ficam confusas sobre o que exatamente as figuras estão representando; assim, em vez de exercitar seus processadores fonológicos, seus confusos processadores semânticos são envolvidos. Pelo mesmo motivo, menos tempo foi dedicado aos “poemas para introdução de letras” do programa, porque esses poemas continham bastante vocabulário desconhecido pelas crianças.
Na semana dois após as seis primeiras letras terem sido introduzidas, foi inventado um jogo que dava às crianças muitas oportunidades para ensaiar as memórias das correspondências grafema/fonema /movimento. Em semanas subsequentes, à medida que novas letras eram introduzidas, mais jogos novos colocavam os processadores fonológicos das crianças bem literalmente “em jogo”–os movimentos atuando como pistas mnemônicas chave entre as associações letra/som. (Para mais exemplos e explicações das histórias, atividades e jogos, veja o PowerPoint que acompanha este artigo.)
Em resumo, entendendo alguns princípios básicos da neurociência, as professoras foram capazes de trabalhar com mais inteligência, não com mais esforço. Essa mudança muito simples na pré-codificação trouxe excelentes resultados. Por ocasião das férias de inverno, quase todos os pré-escolares conseguiam precisamente e automaticamente reconhecer, evocar e reproduzir todos os sons e letras do código básico– as vogais curtas e as consoantes regulares. No intervalo letivo da primavera [spring break], elas estavam lendo e soletrando com facilidade palavras de três e quatro letras com ortografia regular.
Como afirma o neurocientista francês Stanislas Dehaene, “Se os professores, como os técnicos de consertos, puderem atingir uma compreensão de todas as transformações internas, estou convencido de que eles estarão mais bem equipados para descobrir novas e mais eficientes estratégias educacionais (…) Cada professor carrega a responsabilidade de experimentar cuidadosa e rigorosamente, a fim de identificar as apropriadas estratégias de estímulo …” Rompendo com a tradição, essas professoras tentaram fazer exatamente isso.
ReferênciasDehaene, S. (2009). Reading and the Brain: The Science and Evolution of Human Invention. New York: Viking Penguin.
LaBerge, D., Samuels, J.S. (1974) Toward a theory of automatic information processing in reading Cognitive Psychology, Volume 6, Issue 2, April 1974, 293-323.
Logan, G. (2002). An instance theory of attention and memory. Psychological Review, 109(2), 376-400.
McGuinness, D., (2004) Early reading Instruction: What Science Really Tells Us About How to Teach Reading. Cambridge, Mass.: A Bradford Book MIT Press.
Neuman, S., (2006) N Is for Nonsensical, Educational Leadership. 64, 2, 28-31, Association for Supervision & Curriculum Development.
Samuels, S. (1988). Decoding and automaticity: helping poor readers become automatic at word recognition. The Reading Teacher V. 41 (April 1988) P. 756-60, 41, 756-760.
Shaywitz, S., & Shaywitz, B. (2008). Paying attention to reading: the neurobiology of reading and dyslexia. Development and Psychopathology, 20 (4), 1329.
Stanovich, K. (1986). Matthew effects in reading: Some consequences of individual differences in the acquisition of literacy. Reading Research Quarterly, 21, 4, 360-407, International Reading Association.
Sweller, J., & Chandler, P. (1994) Why some material is difficult to learn. Cognition and Instruction, 12, 185-233.
Wolf, M., Stoodley,C. (2007) . Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain. New York: Harper.
©Maio 2010 The Johns Hopkins University New Horizons for Learning
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[1] Mês de reinício das aulas nos Estados Unidos [N. do T.]
[2] Decidiu-se por manter os exemplos no original em inglês [N. do T.]
[3] Um dia, enquanto Sam fazia quicar uma bola, ele/a ouviu o som de um cordeirinho. O cordeiro era tão bonitinho que Sam pegou uma câmera e tirou uma foto dele.
Sharon Delgado, Mestre em Educação
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