28 DE SETEMBRO DE 2014
Tem 18 anos e não se considera rapaz nem
rapariga. A sua identidade não encaixa na escolha que sistematicamente se vê na
obrigação de fazer entre masculino/feminino. As expressões “sem género” ou
“género não binário” às vezes servem, mas não resolvem tudo — na tradução deste
artigo, por exemplo, foi impossível manter a neutralidade.
MONICA HESSE (Texto) e MELINA MARA (Fotografia)
Kelsey
passa os olhos pelas T-shirts no Five Below, uma das poucas lojas que se podem
considerar mais originais neste lado conservador do Oeste do Michigan. “Vamos
Fazer uma Festa” lê-se numa das T-shirts expostas no meio de roupas brilhantes
e leggings por cinco dólares. Noutra, lê-se “Aviso: Tendência para a Asneira.”
Um minuto depois, percebe-se claramente que esta loja não tem o que Kelsey
procura, como aliás nenhuma das outras lojas, pelo menos as das redondezas.
“Acho que vou ter de te fazer uma T-shirt gay”, diz a sua amiga Kahri enquanto saem loja. “Ou talvez nem isso, sabes…”
“Sim.”
“Acho que vou ter de te fazer uma T-shirt gay”, diz a sua amiga Kahri enquanto saem loja. “Ou talvez nem isso, sabes…”
“Sim.”
O que Kelsey Beckham realmente deseja é
uma T-shirt que comunique o seu específico estado de espírito. Nada que indique
homossexualidade ou orientação sexual, mas sim o género. Uma camisola que diga
algo sobre quem a usa e que neste caso e para a maioria das pessoas não é nada
que lhes seja familiar ou com o qual se sintam confortáveis: não é um ele, não
é uma ela. Não é um ser masculino em transição para um feminino ou vice-versa.
Antes, uma T-shirt que diga que Kelsey, com 18 anos, não se identifica com
nenhum dos géneros.
A identidade de Kelsey é “não binária”.
Ou “sem género”. É com isso que se sente confortável, apesar de saber que o
mundo insiste de mil e uma maneiras que tem de se decidir. Como, por exemplo,
fazer um perfil para o OkCupid, que as amigas insistem que faça neste site de
encontros amorosos. Mas, mal Kelsey abriu a homepage, colocou-se-lhe
imediatamente um problema: “Sou [homem/mulher].” Em qual dos quadradinhos
devemos pôr uma cruzinha quando não pertencemos nem a um nem a outro? Como é
que nos orientamos num mundo que nos exige a integração num ou noutro género,
masculino ou feminino, mas onde nos sentimos bem não é em nenhum deles?
Poucos meses antes, alguém começou uma
petição no site da Casa Branca apelando ao reconhecimento dos géneros não
binários. Kelsey assinou a petição, foi a pessoa 22.711 a assinar no meio de
103 mil. No mês anterior, o Facebook começou a autorizar os utilizadores a
personalizar o género nas suas definições e Kelsey fê-lo, seleccionando “sem
género”, “não binário” e “transgénero” de uma lista de mais de 40 opções.
Têm-se discutido as questões de género,
mas de uma forma abstracta, muito distante de onde Kelsey vive — onde grupos de
estudo da Bíblia se encontram em cafés e uma mercearia anuncia filmes ao ar
livre com desconto para quem for de tractor. Na sua escola, onde não existem
sequer organizações gay, as pessoas especulam em surdina que Kelsey e Kahri
devem namorar porque ambas têm o cabelo curto. Elas não namoram, mas como
explicar “não binário” a uma escola onde uma das aulas inclui um capítulo sobre
“gastos de género” e a professora diz a brincar que as raparigas têm de poupar
para todos os sapatos que querem comprar?
Por enquanto, Kelsey navega nos limites
do género usando um laço e leggings Forever 21, com lenços femininos e camisetas de alças desportivas que a
fazem parecer ainda mais magra. A maior parte das pessoas aqui conhecem-na por
“ela” e Kelsey responde a esse pronome, ainda que com irritação.
Estamos em meados de Maio e faltam
poucos dias para terminar as aulas. O Verão virá e quando partir para a
faculdade, neste Outono, não quer ser “ela”. Quer usar o pronome que lhe parece
apropriado: they [que em inglês antigo também é usado para referir a terceira pessoa do
singular de forma neutral, sem tradução para português]. They vai para a faculdade. They vai estudar engenharia. They vai arranjar trabalho. They vai encontrar um companheiro e construir um lar. They vai começar por encontrar uma T-shirt.
“Eu só quero uma coisa subtil, mas que faça as pessoas perceberem do que estou a falar”, diz Kelsey quando as amigas chegam ao café. “Quero uma coisa que torne claro que não sou uma rapariga.”
“Kelsey, ninguém aqui vai perceber o que estás a dizer”, diz Kahri. Kelsey ri e suspira. “Eu sei.”
“Eu só quero uma coisa subtil, mas que faça as pessoas perceberem do que estou a falar”, diz Kelsey quando as amigas chegam ao café. “Quero uma coisa que torne claro que não sou uma rapariga.”
“Kelsey, ninguém aqui vai perceber o que estás a dizer”, diz Kahri. Kelsey ri e suspira. “Eu sei.”
Kelsey com as amigas Kenzie Thompson e
Kristen Shaffer, no Michigan's Adventure Park
“Cinto de segurança?” Nancy Beckham
certifica-se que Kelsey apertou o cinto antes de se afastarem da casa de tijolo
de dois andares onde Kelsey cresceu. Tenta ordenar os papéis que tem no colo,
acabando por os entregar à filha mais nova.
Kelsey olha para a primeira folha e olha
para cima, surpreendida. “Eu li”, responde Nancy. Kelsey mandou-lhe aquilo por
email por isso Nancy leu-o e sublinhou-o. Agora trá-lo consigo para o referir
durante a conversa que estão prestes a ter com a terapeuta de Kelsey.Hormonas: Um Guia.
Para Nancy, mãe de três filhos, 55 anos,
a noção de ter um filho que quer ser neutral quanto ao género não tem sido
fácil. Ela ouvira falar de pessoas que tinham nascido com corpo de mulher mas
que se sentiam homens. Mas nunca tinha ouvido falar em alguém que não queria
ser uma coisa nem outra, e mais do que uma vez perguntou-lhe: “Tens a certeza?
Tens a certeza que se calhar não és apenas uma maria-rapaz?” Kelsey tinha
a certeza.
Identificar-se como “sem género” não
resultou de uma percepção imediata mas gradual, o reconhecimento de que aquilo
que se aplicava às outras raparigas não se aplicava a si. Quando as pessoas
diziam que era bonita, ela encolhia-se — não porque se achasse feia mas porque
as definições das outras pessoas de bonito ou atraente não funcionavam.
Vestidos e maquilhagem só a faziam achar-se mais feia, mas as roupas de rapaz
também não lhe pareciam bem. Não se tratava de ser maria-rapaz. Não se tratava
de um traço da personalidade. Não se tratava sequer das roupas, apesar de estas
serem um sinal imediato do seu desconforto. Tratava-se de algo diferente e mais
profundo.
Procurou na Internet formas de entender
estes sentimentos, deparando-se com coisas sobre a identidade de género. Foi
aí, em blogues com fotografias de indivíduos de corpos andróginos, que aprendeu
o termo “não binário” e sentiu-se aliviada. Ali estavam pessoas que conheciam
aquilo por que ela passou, que também o tinham vivido e que o nomeavam.
Desenvolveram um léxico — em vez de “ele” e “ela” havia outras formas de
escolher neutralidade: Ze. Xe. Ou. Ey. [algumas propostas feitas em português incluem substituir o “a” e o “o”
por x, @ ou *, ou considerar correcto algo como “a rapaz”]. Kelsey gostou de they porque já existia no dicionário.
No ano passado, escreveu uma carta a
Nancy, depois de uma saída para compras em que a mãe reparou que Kelsey
cirandava pela zona de roupa de homem de todas as lojas onde foram. “Não
quero ser uma rapariga que veste roupa de rapaz, nem quero ser uma rapariga que
se apresenta como um rapaz”, escreveu Kelsey. “Só quero ser uma pessoa que seja
reconhecida como uma pessoa. É com isso que me sinto mais à vontade. Sou só uma
pessoa que veste roupa de pessoa, que gosta de se parecer com quem é e que os
outros me vejam como eu me vejo.”
Na sua cabeça, o corpo que lhe pareceria
o certo não é aquele que tem agora. Gostaria que os músculos fossem
redistribuídos, menos nas coxas e mais no dorso. Uma voz mais grave, mas não
demasiado — não ao ponto de soar como um homem. Neutra.
Assim, aqui vão a caminho de uma sessão
de terapia para discutir a possibilidade de Kelsey começar a tomar uma pequena
dose de hormonas.
“Não quero ser insensível”, diz Nancy,
começando uma conversa que tiveram várias vezes. “Mas todos nós temos coisas
diferentes do que gostaríamos que fossem. Quando nos olhamos ao espelho…”
Quando se olha ao espelho, conta-lhe a
mãe, por vezes fica chocada por ver que se tornou uma mulher de meia-idade com
mais 20 quilos do que gostaria. Em alguns momentos de esperança, pensa que
perder peso tornaria a vida melhor. Noutros, percebe que peso é apenas peso —
não é quem ela é, e acabar com o peso não traria automaticamente a felicidade.
Por isso interroga-se: serão os desejos hormonais de Kelsey como o seu peso?
Kelsey é jovem. E se quando for para a faculdade perceber que foram um erro?
“Não digo que resolvam tudo”, afirma. “Só estou a dizer…”
“Que serias mais feliz”, completa Nancy.
“Não digo que resolvam tudo”, afirma. “Só estou a dizer…”
“Que serias mais feliz”, completa Nancy.
Às vezes é-lhe difícil explicar à sua
adolescente tudo aquilo que aprendeu sobre a imprevisibilidade da felicidade. A
vida de Nancy não correu exactamente como ela esperava. Não esperava tornar-se
uma jovem viúva, depois de o marido ter tido um cancro veloz e brutal e ter
morrido, há quatro anos. Não previu que abandonaria a pós-graduação para tomar
conta dele. Agora, depois de procurar explicações para a exploração de Kelsey
sobre o seu género — seria uma manifestação de dor pela morte de Mark? Uma fase
da adolescência? — Nancy está novamente a adaptar-se, a aceitar que a decisão
da filha sobre a identidade de género é válida e que lhe cabe garantir que
Kelsey pense na realidade do mundo em que vive.
“É confuso quando as pessoas não sabem de que género és”, tenta agora. “O que dirias se alguém te perguntasse?”
“Diria que não sou de nenhum. Ambos.” Kelsey lembra-lhe que um primo pequeno recentemente lhe perguntou se era rapaz ou rapariga. Kelsey perguntou-lhe o que é que ele achava e a criança encolheu os ombros, como se adivinhasse que não importava.
“Mas e se for uma pessoa mais velha a perguntar?”
“Não vão perguntar.”
“É confuso quando as pessoas não sabem de que género és”, tenta agora. “O que dirias se alguém te perguntasse?”
“Diria que não sou de nenhum. Ambos.” Kelsey lembra-lhe que um primo pequeno recentemente lhe perguntou se era rapaz ou rapariga. Kelsey perguntou-lhe o que é que ele achava e a criança encolheu os ombros, como se adivinhasse que não importava.
“Mas e se for uma pessoa mais velha a perguntar?”
“Não vão perguntar.”
Estacionaram num pequeno parque, onde
havia uma placa a anunciar consultas de aconselhamento. Uma hora depois,
voltam, com Nancy ao volante e Kelsey inclinada sobre o vidro da janela. Estão
ambas exaustas. Na estrada principal, Nancy pergunta-lhe se quer falar mais.
“Já não tenho energia para este tema”, afirma.
“Mas eu estou a tentar compreender.”
“É que me faz sentir à parte da sociedade, quando tenho de estar sempre a falar sobre isto. Será que sou humana sequer?”, lança. “Quer dizer, eu sei que não sou normal.”
As mãos de Nancy gelam no volante, e ela abana rapidamente a cabeça. “Oh querida, tu não és anormal.”
“Eu continuo a ser exactamente a mesma pessoa.”
“Eu sei. Continuas a ser Kelsey, certo?”
“Já não tenho energia para este tema”, afirma.
“Mas eu estou a tentar compreender.”
“É que me faz sentir à parte da sociedade, quando tenho de estar sempre a falar sobre isto. Será que sou humana sequer?”, lança. “Quer dizer, eu sei que não sou normal.”
As mãos de Nancy gelam no volante, e ela abana rapidamente a cabeça. “Oh querida, tu não és anormal.”
“Eu continuo a ser exactamente a mesma pessoa.”
“Eu sei. Continuas a ser Kelsey, certo?”
Nancy tenta não chorar aqui na estrada,
mas as lágrimas já estão prestes a cair à medida que passam por todas as
igrejas e campos. “Isto é um grande processo”, diz ao fim de um bocado. Ela sabe
que para Kelsey não parece, diz, mas todas estas conversas irão traduzir-se num
avanço. Kelsey pede desculpa por parecer frustrada.
“Sinto-me mal por agir assim.”
“Tens fome? Vamos comer um gelado”, sugere Nancy, forçando um tom alegre.
“Sinto-me mal por agir assim.”
“Tens fome? Vamos comer um gelado”, sugere Nancy, forçando um tom alegre.
Sugere um sítio mas Kelsey torce o
nariz. As pessoas lá andam de calçõezinhos e parecem sempre mais interessadas
em andar de um lado para o outro do que em servir os clientes.
“E o outro sítio?”, responde Nancy. “Sundae qualquer coisa?”
“Country Sundae.”
Nancy acena com a cabeça. “Gelado.”
“E o outro sítio?”, responde Nancy. “Sundae qualquer coisa?”
“Country Sundae.”
Nancy acena com a cabeça. “Gelado.”
Foi uma terapeuta, e não Nancy, a
primeira pessoa com quem falou sobre o género. Tinha tido algumas sessões para
lidar com a ansiedade e, no final de uma delas, a terapeuta perguntou se havia
mais alguma coisa sobre a qual quisesse falar. Kelsey disse que havia mais uma
coisa e no terreno confidencial da terapia disse a expressão “sem género” em
voz alta.
A seguir foi Kahri e com Kahri foi
fácil. Ela já sabia que Kelsey preferia roupas mais masculinas e sempre lhe
disse para fazer o que lhe parecia melhor. Kelsey acabou por lhe explicar o que
era o género não binário por sms e tudo o que Kahri lhe respondeu foi, recorda
agora: “Faz sentido.”
Mas com as outras pessoas não foi assim
tão fácil. Não ter género, aprendeu, significa por vezes ter de o esconder.
Ninguém julgaria Kelsey por ser não binária se ninguém o soubesse reconhecer, e
a maioria das pessoas do Michigan suburbano não sabia. Simplesmente não era uma
conclusão que as pessoas tirassem. Kelsey era “desportiva” ou “artista”. A sua
cabeleireira comentou alegremente que o estilo que ela pedia era “unissexo”,
sem perceber que era exactamente isso que queria.
Kelsey ia ensaiando conversas sobre
questões de género, pesando as reacções dos amigos. Durante uns tempos,
interrogava-se se seria emocionalmente mais fácil ficar calada, mas tudo se
resumiu a isto: queria ser “they”. Como é que isso poderia acontecer se mais ninguém sabia?
Com a amiga Kristen Shaffer, empacota
algumas coisas que terá no novo quarto no campus universitário
A pessoa a quem contou mais recentemente
foi Kristen, uma amiga de infância. Kristen é religiosa, de uma família
conservadora, mas ia acenando enquanto Kelsey defendia que os manuais escolares
deviam definir o género de uma forma que não fosse binária.
“Quero fazer perguntas mas não quero
dizer nada que seja ofensivo”, diz Kristen preocupada, a caminho de um almoço
num dia de Junho. “Não vais dizer coisas ofensivas. Deves fazer perguntas! Se
me ofenderes, eu corrijo-te calmamente.” Ser sem género, explica-lhe Kelsey, é
como viver numa ilha separada do resto do mundo. Kelsey habituou-se a pensar
nas pessoas em termos de quão perto elas estão de chegar a essa ilha.
“Kahri e Erick estão de guarda”, diz Kelsey. Esses são os amigos que estão mais perto de a compreender. “Tu e a minha mãe estão de barco a caminho.”
“Eu quero estar de guarda!”
“Estás perto, no teu kayak.”
“Kahri e Erick estão de guarda”, diz Kelsey. Esses são os amigos que estão mais perto de a compreender. “Tu e a minha mãe estão de barco a caminho.”
“Eu quero estar de guarda!”
“Estás perto, no teu kayak.”
Continuam à procura de um restaurante.
Muitas das conversas aqui parecem dar-se
dentro de carros, não num sítio ou noutro, mas entre sítios. A terra é plana,
as estradas são largas. A própria vida parece uma estação do caminho para a
vida mais importante que está à espera numa universidade próxima, onde Kelsey
estará em breve e onde a sua identidade de género não será um segredo.
Entretanto, arrasta-se o Verão com o The Legend of Zelda na
Nintendo, Parks
and Recreation no Netflix, e uma centena de escolhas nervosas relacionadas com o género.
Kelsey encomenda uma camisola de natação, que nada tem que ver com os fatos de
banho tradicionais das raparigas, para ir a uma festa na piscina. Conhece a
colega do dormitório da universidade numa rede social, uma miúda que parece
fixe e que lhe diz que nunca ouviu falar em “não binário”, mas que dará o seu
melhor para o compreender.
Pouco depois disso, Kelsey e Kahri voam
até São Francisco para visitar o irmão mais velho de Kelsey. Atravessam a pé a
Japantown e observam os leões marinhos numa doca. Pedem uns brownies numa
pastelaria que vende bolos com formas atrevidas e compram recordações com
arco-íris num bairro gay bastante conhecido. Uma tarde apanham o autocarro e um
passageiro aponta para uma ligadura que Kahri tem no joelho. “O que aconteceu?
foi ele quem fez isso?”, brincou. Ele. Não era o pronome que Kelsey andava à
procura e soava um bocado esquisito. Mas aqui estava um estranho amigável que
olhava directamente para Kelsey e via algo diferente. Que reconhecia que, quem
quer que ela fosse, não era uma rapariga.
Foi bom.
“Acho que agora podia ir ao
supermercado”, pensa Nancy em voz alta. A casa está limpa. O trabalho escolar,
do programa em que ela se inscreveu no ano passado, está terminado. O cão já
tem comida.
De manhãzinha, Kelsey enfiou um saco no
carro e partiu para um programa vocacional de Verão, para se inscrever numas
aulas e fazer exames de aferição de nível. O mais novo dos rapazes, que voltou
para casa depois de se formar na faculdade, está fora com um amigo.
A cozinha está estranhamente silenciosa,
com a televisão desligada e os electrodomésticos a zumbir baixinho. É assim que
será daqui a um mês, supõe Nancy, quando a sua filha mais nova sair de casa.
Senta-se à mesa para planear o dia.
O Verão passou depressa e com altos e
baixos. Por vezes Kelsey passava dias sem sequer mencionar a questão do género.
Mas de repente acontecia alguma coisa, como no outro dia, em que estavam ambas
numa casa de banho pública. Kelsey olhou-se ao espelho, virou-se para Nancy e
disse: “Mãe, sinto que não pareço eu.”
Nancy interrogou-se interiormente se
iriam ter mais uma conversa sobre hormonas, mas não disse nada — tal como não
perguntou se Kelsey está à espera que ela use o pronome “they”.
Questiona-se se ao evocar estes assuntos não estará a encorajá-los, e começa a
formar cenários na sua cabeça: e se Kelsey, que às vezes é envergonhada ao
telefone, lhe pedir que marque uma consulta com o médico das hormonas? Se fosse
outra coisa qualquer — um dentista ou optometrista —, ela fá-lo-ia certamente.
Nancy decidiu que se irá sentar ao lado
de Kelsey enquanto ela faz a chamada, para dar apoio. Mas que não será ela a
marcar o número. É suficiente? É um compromisso suficiente entre a aceitação e
o encorajamento, entre a criança que ela ama e a cidade conservadora onde vive,
onde os habitantes falam em voz baixa de pessoas que se divorciam e de assuntosgay?
Em casa, Kelsey e a mãe falam sobre a
mudança para a faculdade
Lá em cima, Nancy tem um armário com
vestidos e saias. Na bolsa de maquilhagem tem batons que aplica cuidadosamente
e que às vezes acha que são “demasiado cor-de-rosa”. Na Internet, tem o seu
perfil no eHarmony, que nunca se lembra de ir ver mas onde claramente está
identificada como uma mulher à procura de um homem. Nancy nunca quis que Kelsey
fosse uma miúda coquette, que usasse maquilhagem e fosse líder de claques. Mas ainda assim tinha
expectativas que tantas mães parecem ter em relação à filha. Como a de que, por
exemplo, um dia ela teria um filho e Nancy iria com ela para a sala de partos.
Esse é o tipo de coisas que mães e
filhas fazem. Kelsey sempre foi independente, menos emotiva do que os irmãos.
Mas enquanto Nancy é calorosa e faladora, o protótipo da pessoa extrovertida,
Kelsey é reservada e introspectiva. É por causa do género ou é dela? E se for
só dela, isso é importante?
Às vezes, Kelsey e Nancy parecem tão
próximas: há dias, quando Nancy se queixou de que o queixo lhe doía, Kelsey
disse: “O meu também!” e apontou exactamente para o mesmo sítio.
Às vezes, Nancy lembra-se de um livro
com nomes de bebés que tinha quando estava grávida, que mostrava a popularidade
e a frequência com que eram usados em rapazes ou raparigas. “Kelsey” era, na
altura, 75% mais feminino. Mas 25% era masculino.
Recentemente leu um artigo sobre uma
família que tinha uma criança pequena transgénero, um rapaz que queria ser
rapariga. Nancy pergunta-se se teria sido mais fácil se tivesse passado por
tudo isto há anos, quando Kelsey era pequena. Acabou por concluir que não.
“Acho que estou contente por ter tido a experiência de ter uma filha durante o
tempo que tive”, afirma. Pensa um bocadinho. “Seja lá o que for que isso
signifique.”
“Será que eu deveria mudar?”, lança
Kelsey, apontando para os calções com ananases desenhados. Estão acima do
joelho e são mais curtos do que qualquer coisa que ela use normalmente. “Estes
são os calções mais gay que tenho.”
As amigas Kristen e Mackenzie cruzam os
braços sobre os seus biquínis e avaliam. “Não”, decide finalmente Kristen.
“Quanto mais pequenas as roupas, melhor para um primeirodate.”
“Não é um date”, diz Kelsey. É só um primeiro encontro.
“Mmm-hmm.”
“Não é um date”, diz Kelsey. É só um primeiro encontro.
“Mmm-hmm.”
É final de Agosto. As três amigas de
infância vão passar um dos seus últimos dias de férias ao Michigan’s Adventure,
um parque de diversões que tem piscinas com ondas e granizados. Kelsey vai para
a faculdade dali a quatro dias; malas e cestos de roupa começam a invadir a
entrada de casa.
Ainda a pingar de um mergulho, Kelsey
puxa os calções com os ananases e a parte de cima do fato de banho, tentando
decidir se este conjunto foi a melhor escolha ou não para um primeiro não date.
Kelsey com a amiga Mackenzie Thompson
num restaurante
Há algumas semanas, depois da orientação
vocacional, cedeu à pressão dos amigos e fez um perfil no OkCupid. Foi com
relutância que preencheu o quadrado “feminino”, mas tratou de usar as primeiras
linhas da sua autodescrição para explicar:
“Sou não binário, sem género, e uso they como pronome. Estou aqui porque tenho esperança de ver que há pessoas queer que gostam de mim e que gostam de mim por mim.”
Quase imediatamente chegaram respostas,
mais do que Kelsey tinha previsto, muitas de pessoas não lhe interessavam
particularmente. Deixou-lhe um misto de excitação e ansiedade, sem querer
magoar ninguém e questionando se fazia sentido sequer conhecer alguém tão perto
do início da faculdade.
Foi então que Avalon escreveu. Avalon
usava o pronome they, também jogava The
Legend of Zelda, também estava em bandas de marchas.
Avalon também ia ao Michigan’s Adventure na mesma tarde e perguntara se Kelsey
se queria encontrar lá, pessoalmente, em frente a uma montanha-russa chamada
Shivering Timbers.
“Que mais roupas levas?”, pergunta agora Mackenzie.
“Comprei aquela camisola”, responde Kelsey.
“Sim, aquela camisola!”
“Que mais roupas levas?”, pergunta agora Mackenzie.
“Comprei aquela camisola”, responde Kelsey.
“Sim, aquela camisola!”
Kelsey pega na camisola com a cara de
Albert Einstein. “A nova e melhorada amizade da Kelsey não nos quer conhecer”,
diz Mackenzie dramaticamente.
“Não, queremos assim!”, insiste Kelsey, tentando explicar porque é que o primeiro encontro com Avalon tem de ser só entre ambas.
“É que somos muito esquisitas.”
“Vão andar na roda gigante?”, pergunta Kristen. “Vais ter um momento à Nicholas Sparks?”
“Que nojo.”
“Não, queremos assim!”, insiste Kelsey, tentando explicar porque é que o primeiro encontro com Avalon tem de ser só entre ambas.
“É que somos muito esquisitas.”
“Vão andar na roda gigante?”, pergunta Kristen. “Vais ter um momento à Nicholas Sparks?”
“Que nojo.”
A Shivering Timbers é uma velha
montanha-russa em que as pessoas andam duas a duas, ficando muito juntas nas
curvas apertadas. Kelsey está de pé à entrada, depois decide sentar-se num
banco próximo, depois põe-se novamente de pé.
Por detrás de uma banca de joalharia
aparece uma figura esguia, pálida, de cabelo preto curto, com calções com
flores mas umas botas de combate masculinas. Reconhecem-se, levantam ambas os
dedos num movimento ondulado, param antes de falar, dão à outra a possibilidade
de começar a conversa. É a primeira vez que Kelsey conhece ao vivo outra pessoa
sem género, biologicamente rapariga.
“Oi!”, diz Avalon.
“Oi.”
“Oi!”, diz Avalon.
“Oi.”
Nancy ainda não sabe de Avalon, e Kelsey
não vê razões para lhe contar. Só restam dois dias para começar as aulas e há
semanas que eles estão planeados: Kelsey e Nancy partem de carro no sábado,
param num festival LGBT de que Kelsey ouviu falar e depois vão para o
dormitório no domingo de manhã.
Mas na sexta-feira Avalon envia uma
mensagem com um convite de última hora para uma festa no sábado na sua terra
natal. Kelsey decide perguntar à mãe se podem alterar o itinerário, propondo
uma paragem para ir ter com Avalon. Surpreendida por Kelsey ter criado uma
relação tão rapidamente com alguém, Nancy aceita — e no sábado à tarde, numa
Hyundai apinhada de material escolar, estaciona num parque, observando Kelsey a
desaparecer para uma tenda decorada com balões. Queria encontrar um café, mas
não conhece muito bem a zona. Em vez disso fica à espera no carro,
questionando-se sobre esta nova amizade de Kelsey. Não lhe perguntou se estava
interessada em Avalon, nem se Avalon nasceu rapaz ou rapariga. E gostou quando
as duas chegaram e Avalon sorriu e acenou de longe para ela.
“Ela parece simpática”, diz Nancy,
quando Kelsey regressa ao carro uma hora mais tarde. Depois dá-se conta. “Ela? They? Tens alguma coisa contra o ‘ze’?” Nancy ficou a saber que algumas
pessoas não binárias usam o “ze” que gramaticalmente lhe é mais fácil
que o “they”. Ultimamente tem pensado muito em pronomes. Há dias, de noite, quando
estavam na cozinha, conseguiu ter uma conversa que andava a evitar. “Kel, acho
que tu nunca me pediste explicitamente para não usar o ‘ela’”, disse, enquanto
Kelsey enchia um copo de água. “E eu acho que tu pedirias se isso fosse
realmente importante.” Ficou à espera que Kelsey dissesse alguma coisa, que lhe
desse um sinal de que importava o suficiente para ela mudar. “É realmente
importante para ti?”, acabou por perguntar. Kelsey virou-lhe as costas,
deixando a água a correr no lava-loiças e desejando que Nancy chegasse a essa
conclusão sozinha. “Não sei”, respondeu.
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