domingo, 21 de setembro de 2014

Relações fortes

Relações fortes

Tornar-se tio ou tia é uma coisa que nos acontece. É completamente alheia à nossa vontade ou ao nosso controlo, e, no entanto, muda-nos a vida. Unidos pelo sangue, juntos pelo amor, são assim as relações entre tios e sobrinhos.


Não creio que tenha sido uma criança ou adolescente mais difícil do que a maioria, embora tenha memórias claras de ter dado um bocadinho mais de trabalho do que as minhas irmãs… De qualquer forma, recordo-me de, ocasionalmente, achar que os meus pais não estavam a ser lá muito justos comigo. E, nessas alturas, visitava a minha tia. Quem me conhece achará isto vago, dado que eu tenho muitas tias, mas a verdade é que esta era a única que vivia ali, à distância da minha caminhada a pé, e a única que, ao longo da minha infância, vi com uma regularidade praticamente diária. Talvez por isso fosse a que me falava mais ao coração, não sei. Ou talvez não fosse só isso, porque, desconfio, ela também tinha um fraquinho por mim. Não lhe contava diretamente os problemas que me tinham levado lá, mas a verdade é que bastava estar ali com ela um bocadinho, a vê-la fazer crochet ou entretida com alguma tarefa doméstica, enquanto ia falando comigo sobre assuntos banais, para voltar para casa com uma renovada sensação de conforto. E foi assim durante muitos anos, mesmo quando ela e o meu tio – ele sim, meu tio de sangue – se separaram, dando azo a inevitáveis tomadas de partido e acabando com aquela harmonia de família alargada que sempre tínhamos partilhado. Entretanto o meu tio faleceu, e um acontecimento dessa magnitude põe sempre tudo em perspetiva, pelo que os adultos que andavam de candeias às avessas fizeram as pazes e eu tive a minha tia de volta. Hoje, quando a visito, abraço-a enquanto lhe pergunto como está a “velhota”, e ela aperta-me no peito e diz “vai-se andando, novinha”.

Mas ser sobrinha é uma coisa, e ser tia é outra completamente diferente. E, por muitas pessoas que tenha amado ao longo da minha vida, só quando os meus sobrinhos nasceram é que percebi duas coisas importantes sobre o coração: primeiro, é possível viver sem um, uma vez que, claramente, ele deixou de bater no meu peito e passou a estar permanentemente com eles; segundo, ele divide-se em tantas partes quanto o nosso amor maior, e são três no meu caso. Presumo que seja o mesmo ensinamento que se aprende enquanto pais.

Os parentes esquecidos?alt
Se perguntarem às pessoas à vossa volta, vão reparar que, salvo raras exceções, o processo de crescimento de todas elas está rodeado de recordações de tias e tios que foram amigos, companheiros, professores e guias, fontes de apoio e de crítica ocasional, importantíssimos na experiência do que significava ser uma família. E, no entanto, se analisarmos o discurso público e académico sobre assuntos de família, estes parentes raramente lá estão.
Há, portanto, uma certa tendência para esquecer o papel dos tios no discurso público das questões que dizem respeito à família, colocando-se o foco das análises, dos estudos e dos livros no casamento e na paternidade. Mas afinal, qual é esse papel, e que importância tem no crescimento saudável das crianças? Perguntámos à psicóloga Ana Cardoso de Oliveira, que foi perentória: “Todas as pessoas que amam as crianças têm um papel fundamental na vida delas. Quanto mais pessoas as amam e demonstram esse amor, mais elas são felizes, e quanto mais felizes, maior a possibilidade de crescerem saudáveis de um ponto de vista psicossocial.”
Os tios e tias funcionam como uma espécie de “suplemento” dos pais, fornecendo fontes alternativas de informação, de diversão, e agindo como confidentes, nomeadamente em relação a tópicos sensíveis, em questões para as quais sobrinhos e sobrinhas consideram a atitude dos pais demasiado crítica. E tudo isto num ambiente em que os miúdos se sentem emocionalmente confortáveis.
Mas, atenção, cada macaco no seu galho, e, por melhor que seja a relação, os tios não são o melhor amigo: “O papel dos tios não é o de amigos, é o de complementar o papel dos pais”, diz-nos a psicóloga. E, continua, “para o crescimento, é importantíssimo ter o tio ou tia preferidos, mas com a maturidade esse papel é desvalorizado”. Isto não significa, claro, que tios e sobrinhos não possam manter uma relação próxima quando os últimos crescem, mas apenas que essa relação muda, deixando de centrar-se na “componente lúdica, para assumir outro papel”. Há tios que mantêm esta “aura”, como lhe chama Ana Cardoso de Oliveira, durante mais tempo, “mas são normalmente os tios mais ausentes, que se veem menos”, e que chegam sempre carregados de novidades, seja em forma de presentes, ou de aventuras para contar.

Divertir é preciso
Há, então, esta componente lúdica que os tios e tias assumem na vida de sobrinhos e sobrinhas durante a infância. Eles são aqueles que “inventam” constantemente programas diferentes e divertidos, como ir ao circo, ou ao bowling, patinar no gelo ou andar de kart.
A diversão é um ingrediente importante nas relações de tios e sobrinhos, e, neste contexto, tios e tias são unânimes em reconhecer o seu privilégio especial. É que, embora “tenham sempre que existir regras, são normalmente – e convém que sejam – regras diferentes das dos pais”, esclarece a psicóloga. Assim, se combino uma tarde de brincadeiras em minha casa, e a sala fica em estado de sítio, não é importante, porque os meus sobrinhos não vivem ali. O meu papel não é, numa tarde, construir um comportamento, eu estou apenas feliz por os ver e por passarmos tempo juntos. E este é um luxo a que os pais não se podem dar. Mas a verdade é que também é pouco provável que eles vão depois fazer a mesma bagunça para casa dos pais, porque, consciente ou inconscientemente, as crianças sabem que as regras são diferentes. E é exatamente por isso que os tios e tias são tão divertidos, porque são diferentes dos pais: embora igualmente incondicionais no seu amor e apoio, são relativamente despreocupados com a disciplina e com o estabelecimento de limites.
Naqueles momentos em que estão com os tios, a atenção consciente das crianças é desviada dos deveres, responsabilidades e aborrecimentos diários, sendo substituída pelas novas experiências partilhadas com um companheiro adulto mais brincalhão e divertido.
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A perspetiva da terceira pessoa
Os videojogos oferecem, normalmente, três perspetivas ao jogador: uma do próprio jogador, outra do ponto de vista do seu adversário, e ainda outra que é a perspetiva de uma terceira pessoa, permitindo, normalmente, visualizar todo o cenário do jogo. Esta última, a da terceira pessoa, é a que fornece, portanto, a perspetiva mais ampla. E é exatamente esta a perspetiva que os tios têm da vida dos sobrinhos. Eles são um membro do círculo familiar, mas não estão condicionados pelas restrições desse círculo; sabem o contexto de tudo, a forma como as regras funcionam, quais as expectativas, mas não estão limitados por elas. A perspetiva única dos tios deriva do facto de estarem distantes do núcleo das famílias, das relações diretas entre os pais e os filhos, mas, simultaneamente, de terem conhecimento “interno” e de manterem uma relação de uma vida com a maioria dos membros da família.
Os tios e tias beneficiam, no fundo, de terem uma maior distância emocional da responsabilidade diária e imediata de efetivamente “criar” e educar as crianças, embora mantendo o envolvimento. Há um pouco menos de emoções envolvidas. O amor está lá, claro, tão incondicional como o dos pais, mas ao mesmo tempo não estão constantemente “uns em cima dos outros”, há mais distância. É mais fácil aos tios simplesmente aceitar aquela pequena pessoa como um todo, pois a verdade é que não têm que se preocupar com as pequenas coisas. Eles complementam o trabalho dos pais, mas não são os pais.
No geral, tios e tias veem-se como mais independentes e com menos tendência para criticar e julgar do que os pais, e os sobrinhos costumam concordar com esta análise.
Na interação com os tios, seja a fazer algo ou numa simples conversa, os sobrinhos têm uma atitude mais à vontade e mais relaxada do que com os pais.

Um laço único
Os tios e tias enriquecem a vida dos sobrinhos e sobrinhas de várias formas, com contribuições únicas e insubstituíveis, que derivam da longevidade dos relacionamentos, do conhecimento profundo dos membros da família, e, ao mesmo tempo, do estatuto de “terceiros”. Claro que, como em qualquer relação, o enriquecimento faz-se nos dois sentidos, e os tios também saem a ganhar do tempo que passam com os sobrinhos. Mas, afirma a psicóloga Ana Cardoso de Oliveira, “embora o registo da parentalidade seja sempre o de que é um privilégio para os tios passarem tempo com os sobrinhos, principalmente se os tios não têm filhos, a verdade é que as grandes privilegiadas são mesmo as crianças”.
Os tios e tias proporcionam experiências enriquecedoras, que funcionam como um suplemento às atividades, interesses e habilidades dos pais, e que os complementam.
O seu modo de vida, a sua especialidade profissional e os seus hobbies, alargam o raio das experiências que os pais podem proporcionar aos filhos. Fazem parte das funções familiares de tios e tias proporcionar apoio e companheirismo, agir como confidentes, e até servir de modelo para um tipo alternativo de famílias ou de escolha de carreiras.
Tias e tios tronam-se muitas vezes importantes pilares de apoio em momentos de necessidade especial, como a morte de um membro da família ou casos de separação e divórcio. Eles dão aos pais alívio direto no cuidado da criança durante os primeiros anos, medeiam conflitos entre pais e filhos durante a adolescência, e servem também como confidentes e elemento de “desabafo” para os próprios pais.
Às vezes, sobrinhas e sobrinhos parecem usar os tios e tias como “tubos de ensaio” para problemas que, eventualmente, acabam por partilhar com os pais. Mas nem sempre é importante que os tios proporcionem conselhos diretos – provavelmente, muitas vezes nem será possível fazê-lo; o mais importante para os sobrinhos é ter alguém que ouça as suas preocupações.
Os tios e tias contribuem para o quotidiano dos pais e das crianças, complementando o papel dos primeiros e criando laços únicos de amizade com as segundas. E, por isso, não devemos subestimar o seu papel no seio das famílias.

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