sábado, 28 de junho de 2014

COMO E QUANDO ENSINAR - JOÃO DOS SANTOS


COMO E QUANDO ENSINAR

João dos Santos
Ensaios sobre educação. – Lisboa, 1982: 2° v: O falar das letras
A pedagogia, que devia inspirar os professores para desenvolver psiquicamente cada criança, de acordo com as suas aptidões básicas, corre o risco de se deformar com vista à promoção de um ensino académico mecanizado de leituras e conhecimentos que não tenha em conta os conhecimentos que a criança adquiriu espontaneamente na comunidade.
A psicologia métrica dos laboratórios, desligados da educação e da pedagogia, pode vir a dominar e a dirigir tecnicamente a escola e os professores, na crença de que são os conhecimentos científicos teóricos sobre o desenvolvimento da criança que devem explicar a “arte de educar” e decidir de como e quando ensinar.
Uma pedopsiquiatria insalubre, que à força de medicamentos com os quais os fabricantes pretendem resolver todos os problemas psicológicos a pretexto de que é organicista, pode impedir a resolução espontânea dos desvios do desenvolvimento psíquico, imbecilizando as crianças, tomando-as incapazes de aderir aos processos de aprendizagem.
As técnicas psicopedagógicas e médico-pedagógicas podem ajudar e resolver muitas situações mas só a educação e os educadores podem prevenir a maior parte dos desvios da evolução infantil.
A criança de hoje encontra-se muitas vezes perdida numa sociedade donde tende a ser segregada pela “civilização do automóvel”, pela falta de espaços livres, pela poluição e pela tecnocracia educativa. A criança vive, muitas vezes, na inquietação e na tristeza, que não tem tempo para expandir os seus sentimentos, nem espaço para se exercitar na actividade lúdica e educativa.
Porque a ciência que liberta o Homem pode ser utilizada para o oprimir … Porque a técnica que serve o Homem pode ser utilizada para o torturar … Porque a cultura que é do Homem, pode ser instrumento da sua submissão a culturas que lhe são estranhas … Porque tudo quanto nos torna mais livres pode vir a escravizar-nos … Há que proclamar que todo o Poder da Ciência, da Técnica e da Educação deve ser, em cada momento, desafiado pela fantasia e pela acção do Homem. Há que proclamar o direito à fantasia e ao pensamento actuante.
Porque os direitos do Homem e os direitos da criança, consignados nas leis se não cumpriam, foi necessário proclamá-los na solenidade de magnas assembleias … para que a nossa perplexidade perante o que ouvimos nos salvasse da ignorância cúmplice de não cuidarmos quanto devíamos, nem do Homem nem da criança que trazemos dentro de nós, para que soubéssemos que a nossa condição humana nos exige o conhecimento de tudo quanto não se faz e não se cumpre da lei humana fundamental que é a de, como pessoas e como comunidade, cuidarmos do bem-estar das crianças que vão amanhã dar continuidade às nossas obras.
Por sabermos, agora, sem possibilidades de fugirmos à responsabilidade, porque a lei foi escrita, que os direitos da criança se não concediam, apesar de todas as leis anteriormente escritas e não escritas … temos de duvidar, de pôr à prova, de reflectir e de constantemente rever todas as leis que às crianças se referem, para que possamos proclamar de novo que, tal como a ciência, a técnica e a cultura, a Declaração dos Direitos da Criança pode servir o Homem ou pode reduzir a criança a uma coisa banal que se manipule ou se deixa manipular.
As declarações não são ouvidas e entendidas por todos da mesma forma. Nada nos impede de pensar que aqueles que parecem seguir a melhor das interpretações sobre o que é o bem-estar da criança possam vir a provocar o mal-estar dos homens.
Há que proclamar uma vontade colectiva de criar. Há que proclamar a nossa vontade de acompanhar a par-e-passo as nossas crianças, desde que nascem até que sejam pessoas pequenas e até que sejam pessoas grandes …

DIALOGAR SOBRE A INFÂNCIA

Há que proclamar que não confiamos as nossas crianças a quem não possa ou não queira falar a nossa linguagem. Há que decidir que dialogaremos sobre a infância entre nós, pais e parentes, e que confiaremos então as nossas crianças a quem saiba dialogar connosco, a quem confie na nossa razão e na nossa imaginação.
Há que confiar em que saberemos dizer NÃO a quem se proponha, sem diálogo, cuidar do bem-estar das nossas crianças. Há que resistir àqueles que nos queiram vender, à sombra da nuvem da poluição publicitária, os leites enlatados que desumanizem a relação das mães com os filhos, os brinquedos com que não brincamos nem construímos no diálogo com as crianças e os adultos do nosso clã; as leis, as normas e os regulamentos que nos pretendem impor sem diálogo, numa cultura mecanizada e modelada por padrões que sejam contra as leis naturais do nosso grupo comunitário.
Há que pensar se nos deixaremos dormir, na boa consciência beata de que, quando existe uma lei escrita, ela será cumprida, se dela fizermos a entrega à máquina da administração. Como pode a máquina compreender os direitos fundamentais do Homem e da Criança, se estes têm necessariamente de ser mais sentidos que pensados, mais vividos da emoção do que elaborados pela razão, mais implícitos na actuação de cada um, do que explicitados nos papéis?
Há que proclamar que a criança do Homem, e o Homem, têm direito a pensar os homens, a duvidar das leis e a fantasiar a sua condição infantil e humana, a exigir o direito à fantasia. A fantasia existe dentro de nós, ela é uma criação da nossa relação com aqueles que nos criaram, porque as nossas pessoas se criaram na nossa infância, porque foram obra de criatividade e porque a criatividade não se vende, projecta-se nos materiais de que dispomos.
Há que exigir que se construam escolas, mas há que exigir também que se dêem às crianças as condições para que possam ver dentro de si as suas aspirações, para que as possam projectar em obras e em dádivas para o enriquecimento dos outros e do património cultural da comunidade.
Há que dar à criança dos homens e ao Homem espaço e tempo para que cada um se possa livremente confrontar com modelos da natureza humanizada, da natureza das obras do Homem … Mas o espaço e o tempo não são só utilizados pela natureza humanizada ou pelos utensílios e as máquinas que servem o Homem: são também queimadas em “máquinas de fazer fumo”.
O tempo da criança do Homem gasta-se cada vez mais com máquinas que fornecem de que beber, pensar e imaginar os pensamentos e as fantasias deterioradas daqueles que as vendem.
O espaço ocupa-se com betão, ferro e aço que ultrapassaram a escala humana e consome-se no fogo das máquinas de destruir e dos seus detritos, que no círculo vicioso do nosso bem-estar e da nossa insatisfação, anulam as melhores das intenções.

O CASTIGO REGULAMENTADO

João dos Santos
Ensaios sobre educação. – Lisboa, 1982: 1° v: A criança quem é?

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