sábado, 31 de maio de 2014

A "caixa de ferramentas" e a "caixa de brinquedos"...

A "caixa de ferramentas" e a "caixa de brinquedos"...
Mais uma bela metáfora de Rubem Alves
Rubem Alves: As tarefas da educação
O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do trabalho, ele leva uma caixa de ferramentas. E na mão esquerda, mão do coração, ele leva uma caixa de brinquedos. Ferramentas são melhorias do corpo.
Nossa inteligência se desenvolveu para compensar nossa incompetência corporal. Inventou melhorias para o corpo: porretes, pilões, facas, flechas, redes, barcos, jegues, bicicletas, casas... Disse Marshall MacLuhan corretamente que todos os "meios" são extensões do corpo. É isso que são as ferramentas, meios para viver. Ferramentas aumentam a nossa força, nos dão poder. Sem ser dotado de força de corpo, pela inteligência o homem se transformou no mais forte de todos os animais, o mais terrível, o maior criador, o mais destruidor. O homem tem poder para transformar o mundo num paraíso ou num deserto.
A primeira tarefa de cada geração, dos pais, é passar aos filhos, como herança, a caixa de ferramentas. Para que eles não tenham de começar da estaca zero. Para que eles não precisem pensar soluções que já existem. Muitas ferramentas são objetos: sapatos, escovas, facas, canetas, óculos, carros, computadores. Os pais apresentam tais ferramentas aos seus filhos e lhes ensinam como devem ser usadas. Com o passar do tempo, muitas ferramentas, muitos objetos e muitos de seus usos se tornam obsoletos. Quando isso acontece, eles são retirados da caixa. São esquecidos por não terem mais uso. As meninas não têm de aprender a torrar café numa panela de ferro, e os meninos não têm de aprender a usar arco-e-flecha para encontrar o café da manhã. Somente os velhos ainda sabem apontar os lápis com um canivete...
Outras ferramentas são puras habilidades. Andar, falar, construir. Uma habilidade extraordinária que usamos o tempo todo, mas de que não temos consciência, é a capacidade de construir, na cabeça, as realidades virtuais chamadas mapas. Para nos entendermos na nossa casa, temos de ter mapas dos seus cômodos e mapas dos lugares onde as coisas estão guardadas. Fazemos mapas da casa. Fazemos mapas da cidade, do mundo, do universo. Sem mapas, seríamos seres perdidos, sem direção.
A ciência é, ao mesmo tempo, uma enorme caixa de ferramentas e, mais importante que suas ferramentas, um saber de como se fazem as ferramentas. O uso das ferramentas científicas que já existem pode ser ensinado. Mas a arte de construir ferramentas novas, para isso há de saber pensar. A arte de pensar é a ponte para o desconhecido. Assim, tão importante quanto a aprendizagem do uso das ferramentas existentes —coisa que se pode aprender mecanicamente— é a arte de construir ferramentas novas. Na caixa das ferramentas, ao lado das ferramentas existentes, mas num compartimento separado, está a arte de pensar.
(Fico a pensar: o que as escolas ensinam? Elas ensinam as ferramentas existentes ou a arte de pensar, chave para as ferramentas inexistentes? O problema: os processos de avaliação sabem como testar o conhecimento das ferramentas. Mas que procedimentos adotar para avaliar a arte de pensar?)
Assim, diante da caixa de ferramentas, o professor tem de se perguntar: "Isso que estou ensinando é ferramenta para quê? De que forma pode ser usado? Em que aumenta a competência dos meus alunos para cada um viver a sua vida?". Se não houver resposta, pode estar certo de uma coisa: ferramenta não é.
Mas há uma outra caixa, na mão esquerda, a mão do coração. Essa caixa está cheia de coisas que não servem para nada. Inúteis. Lá estão um livro de poemas da Cecília Meireles, a "Valsinha" de Chico Buarque, um cheiro de jasmim, um quadro de Monet, um vento no rosto, uma sonata de Mozart, o riso de uma criança, um saco de bolas de gude... Coisas inúteis. E, no entanto, elas nos fazem sorrir. E não é para isso que se educa? Para que nossos filhos saibam sorrir? Na próxima vez, a gente abre a caixa dos brinquedos...
Rubem Alves, "soixante-dix", é educador. Escreveu, entre outros, "Livro sem Fim" (Edições ASA), publicado em Portugal, e "Se Eu Pudesse Viver Minha Vida Novamente..." (Verus).
Site: www.rubemalves.com.br

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