INFÂNCIA EM FRANJAS: LIVRO PARA NOS CURAR DE SER GENTE GRANDE
publicado em
literatura por Mônica Montone
Em seu décimo sétimo livro, Infância em franjas, a poetisa Astrid Cabral
celebra o tempo em que todas as coisas são possíveis: a infância. Não se
trata de um livro memorialista. Seus poemas falam da criança adormecida
que existe em cada um de nós.
Tem dias em que a gente
acorda duro para a poesia. A poesia dos livros, dos bichos, dos bicos serrados
que alimentam distâncias.
É preciso acordar um
pouco criança para ler poesia com olhos de ver. Acreditar que as estrelas fazem
ciranda mesmo quando nos sentimos um zé-ninguém.
É preciso não precisar
de nada, não esperar alguém - nem notícia, novidade ou carta - para ler poesia
bem.
Porque a poesia nos
traz, quase sempre, o que não estamos procurando. E procurar é arte que só
gente grande faz - os pequenos não procuram nada, sabem que mamãe vai achar e
se não achar é porque foi parar no mundo dos brinquedos sumidos e pronto. É
preciso estar vazio de um bocado de preocupação para ler poesia. Deve ser por
isso que as "gentes grandes" lêem tão pouca poesia. As "gentes
grandes" quase nunca estão vazias de preocupação. Desde o lançamento de Infância
em franjas que venho carregando o livro de Astrid Cabral na bolsa, mas
somente essa semana, quando me senti mais trêmula que maria-mole, mais
dissolúvel que gelatina e leite em pó, e, mais vazia que um saco de pipoca
amassado é que fui ter com seus poemas. E não é que a criança de Astrid encontrou
a minha!? Seu novo livro funcionou como uma compressa sobre minhas dores de
gente grande (que não sou). Aplacou, ainda que por alguns instantes, minha
pressa. Perceber que também eu tive (tenho) Crenças caducas me
fez lembrar o que havia esquecido: a infância é um estado de espírito.
Uma cratera tão funda
furando o chão norte a sul Estrelas a me piscarem de lá do altíssimo azul
Plantas e bichos falando língua que eu entenderia
Caravelas me levando a
terras fora do mapa Gente grande generosa que tudo me ensinaria
Meu anjo da guarda que seu rosto me
mostraria
Astrid Cabral nasceu em
Manaus, mas vive no Rio de Janeiro. É poetisa, constista e professora
universitária. Foi casada com o poeta Afonso Felix de Sousa e tem mais de 17
livros publicados. Em 2004 recebeu o Prêmio Nacional de Poesia da Academia
Brasileira de Letras, pelo livro Rasos d`água. Infância em franjas é um livro
charmoso, quase artesanal, editado pela editora KD. Uma celebração ao tempo em
que todas as coisas eram possíveis, que conta com uma pequena tiragem de apenas
300 exemplares e ilustrações de Mariana Felix.
Leitura para amolecer
dias e corações duros.
Três poemas de Infância
em franjas:
CASEMIRO, CASEMIRO
Ai que não tenho
saudades da infância bem lá pra trás!
Que raivas choros
temores junto a adulto senhores.
E as tarefas rotineiras
que não acabavam mais? à sombra de rijas regras e urubus nos beirais!
Ai vontade de crescer
ouvir conversas inteiras tossir e espirrar na igreja e sem melindres dizer
indesejáveis verdades!
Enfrentar a lei dos
grandes e encarar o fogo do inferno como conversa de espertos.
CONSTANTE REBELDIA
Minha mãe? A idealista
domadora do caos.
Serva da beleza visível
paladina da perfeição na insana luta cotidiana contra lençóis amassados sapatos
desengraxados laços desengonçados e a obscena deselegância de minhas pernas
abertas de minha gula sem regra de meus hábitos malucos de meus estudos noturnos.
Eu, a desatenta filha
pobre cabeça virada para o mundo do invisível.
Ah! Indomável menina
desobediente mesmo sem malévolo intento.
A constante rebeldia
diante de normas e leis.
Eu, cega a hierarquias e
à censura alheia.
Eu sempre de costas a
bom tom e boas maneiras.
Eu amante da liberdade
irmã de todos os pássaros.
NA CHUVA
Nunca entendi os
guarda-chuvas.
Sombrinhas, sim
abrigavam do sol.
Se o chuveiro do céu se
abria, queria banho.
Corria atrás de maiô
sabonete e pente.
Ávida penetrava as frias
cortinas d'água rio em pé peneirando.
Fechava as pálpebras:
estrelas aterrissassem faiscando em minha face.
Até que a voz antipática
me gritasse a ordem: Já já pra dentro de casa.
(imagens: google)
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