domingo, 21 de setembro de 2014
LUÍSA – A menina com a vida embaciada!
LUÍSA – A menina com a vida embaciada!
De noite, os sonhos tinham fome.
Não lhe apetecia acordar porque o dia era grande demais. A barriga saltava a hora da comida. Porque não havia. Os ouvidos lembram-se dos gritos e das dores. Os braços e a alma lembram-se das picadas e da miséria.
Podia o carinho da infância fazer doer tanto?
Na verdade, a Luísa não sabia o que era o carinho e nunca tinha sido menina de verdade. O mundo perfeito da infância não podia ser mais imperfeito! Teve de deixar a mãe, o pai e a casa onde morava que não era bem casa. A sua história doía-lhe mas era a sua.
Foram buscá-la de emergência. A Luísa deixou de ser só menina e passou oficialmente a ser uma “menina em risco”.
Perdeu o que tinha quando foi para uma instituição. Quando perdeu tudo, o coração ficou cheio de culpa. Naquele instante, perder tudo não significou ganhar nada. O sistema sabia que tinha de ser mas ela não sentia. Era pequena e só pensava “que teria feito de errado?”.
Aprendeu a palavra "técnicos" (enquanto outras crianças aprendem palavras mais doces) e falou com muitos. “Agora, vai ficar bem”, ouviu dizer. Aprendeu a contar e a recontar a sua história e, desde pequena, a "frequentar" reuniões.
A vida que doía foi ficando distante mas era sua. O dia passou a ter horas certas. O tempo passava rápido. Mas tinha de esperar. O sistema não sabe que uma criança tem pressa. E viu que a sua vida passou a ter prazos. Passados uns meses, as pessoas voltavam. Fizeram menos perguntas.
Ela tinha um muro no meio da sua vida que os outros não viam. De um lado, a sua história que doía. Do outro lado, o presente indefinido que balouçava na sua cabeça, como geleia num frasco grande demais. Do lado do presente, aprendeu a falar com terapeutas, técnicos, assistentes sociais… nisso ninguém a batia. Os amigos da escola falavam com primos, com tios, com o dono da mercearia…
Na escola, as coisas eram complicadas. Sentia-se perdida na matéria mas também não tinha de se esforçar porque sabiam quem ela era e ela também. Era a única que chegava à escola numa carrinha com letras escritas. O tempo passou e as letras começaram a fazer-lhe impressão. Tinha medo que achassem que era vergonha, como era.
Um dia, foi a casa de uma amiga da escola e não viu lá extintores, nem mangueiras de incêndio como tinha no centro. E perguntou se os bombeiros nunca foram lá a casa fazer um “simulacro” (não terá dito bem a palavra mas os pais da amiga perceberam e disfarçaram).
Passaram mais meses, agora, os técnicos quase não lhe fazem perguntas. “Está a ficar bem”, ouviu dizer. Todos os dias, à noite, as auxiliares iam embora e vinham outras. De manhã, já eram outras que a levavam na carrinha. Ela ficava sempre no centro mas as auxiliares entravam e saíam. Aprendeu a palavra "turnos".
Em casa da amiga não era assim que funcionava, os pais não mudavam durante o dia e a noite. Também nunca chegou a saber se lá em casa da amiga tinham feito um simulacro. Todas as semanas a amiga dizia que ia fazer compras de coisas à loja, com a mãe, para fazer a comida. E que, às vezes, ia comprar brinquedos e roupa.
Na instituição, as coisas para fazer a comida chegavam numa grande camioneta. Eram as cozinheiras de farda que guardavam as coisas na dispensa. Em casa da amiga, podiam abrir o frigorífico mas no centro era enorme e não podia entrar na dispensa porque era proíbido.
A mãe da sua amiga usava um avental, como o que ela também usava quando brincava na casa das bonecas do ATL. Porque é que no centro a moda das cozinheiras era andar de farda? A roupa e os brinquedos chegavam ao centro, através de várias pessoas. Às vezes, vinha ajudar a levar os sacos para o quarto da roupa. Afinal, era tudo simples demais, não precisava de ir à loja.
No centro, as auxiliares eram simpáticas mas ninguém se deitava ao seu lado, a ler um livro. Eram muitos para deitar. A amiga da escola contou-lhe que, numa noite, tinha-se levantado e foi para o meio da cama dos pais porque teve um pesadelo. E ela ficou a pensar para onde poderia ir se um dia se levantasse também de noite. Talvez para a lavandaria que é onde estão as auxiliares a dobrar a roupa e a passar a ferro.
Passaram meses e, um dia, vieram outra vez os técnicos ao centro de acolhimento. Já os conhecia mas não sabia bem se eram terapeutas ou assistentes sociais. Tinha de falar com tantos técnicos que até confundia os nomes.
Nesse dia, chovia. Foram ter ao quarto e ficaram a conversar uns com os outros. Ela subiu para uma cadeira e ficou a olhar para a janela. Não se lembra de lhe terem feito perguntas. Mas lembra-se de ter ouvido dizer: “a Luísa, está bem!”.
Eles não viram mas se tivessem olhado do lado de fora da janela, tinham notado que a Luisa tinha a sua vida embaciada. De um lado, a sua história de menina em risco que ainda doía e que era a sua. Com o tempo até idealizou que era melhor do que tinha sido. Do outro lado, o presente incerto, sem ninguém por perto ou melhor com demasiadas pessoas por perto.
No meio da sua vida sentia o muro alto que a separava em duas. Quem poderia desembaciar a sua vida? Agora, tinha coisas que não tinha mas não podia correr no meio da noite para a cama de ninguém.
Naquela visita, naquela reunião e naquele relatório foi decidido: “A Luísa vai continuar aqui, está mesmo bem!”.
Passaram mais meses. A Luísa tinha-se transformado de uma “menina” num “caso”. Que é assim que são tratadas as meninas nos processos. E o “caso” da Luísa estava a correr como tinha de correr. Da próxima vez, já não vieram e bastou enviar um fax. Havia mais casos a tratar e não sobra tempo.
Depois, passaram meses e anos. A Luisa passou a ser um “caso”, entre as 8.142 “crianças invisíveis” que vivem em instituições, em Portugal!
Está no dossier técnico, com as assinaturas todas… não se pode fazer mais nada, dizem, e há mais casos urgentes para tratar.
Mas um “caso” não é uma vida!
Não haverá mesmo mais nada a fazer?
Realmente, o mundo é imperfeito! Mas para as crianças não deve e não pode ser! Está na hora do país e dos organismos nacionais começarem a pensar, a sério, na solução do acolhimento familiar e em abraços!
Somos o país com um dos piores retratos na Europa (com mais de 96% de crianças institucionalizadas) que mancha a imagem dos portugueses que são um dos povos mais solidários do mundo. É importante que cada um de nós não se conforme. Juntos podemos fazer a diferença, sensibilizando o Sistema de Proteção Português a mudar de mentalidade e de forma de atuação.
Uma luz e um sinal de esperança. Já encontramos, formamos e acompanhamos uma bolsa de famílias de acolhimento de qualidade. O seu valioso papel é cuidar e educar uma criança até poder regressar para os seus pais, ou até ser adotada ou até ser maior. Já acolhemos mais de noventa crianças que não precisaram de ser institucionalizadas e continuamos a trabalhar por esta causa...
MISSÃO PIJAMA
Serviço de Acolhimento Familiar
MUNDOS DE VIDA
LUÍSA – A menina com a vida embaciada!
De noite, os sonhos tinham fome.
Não lhe apetecia acordar porque o dia era grande demais. A barriga saltava a hora da comida. Porque não havia. Os ouvidos lembram-se dos gritos e das dores. Os braços e a alma lembram-se das picadas e da miséria.
Podia o carinho da infância fazer doer tanto?
Na verdade, a Luísa não sabia o que era o carinho e nunca tinha sido menina de verdade. O mundo perfeito da infância não podia ser mais imperfeito! Teve de deixar a mãe, o pai e a casa onde morava que não era bem casa. A sua história doía-lhe mas era a sua.
Foram buscá-la de emergência. A Luísa deixou de ser só menina e passou oficialmente a ser uma “menina em risco”.
Perdeu o que tinha quando foi para uma instituição. Quando perdeu tudo, o coração ficou cheio de culpa. Naquele instante, perder tudo não significou ganhar nada. O sistema sabia que tinha de ser mas ela não sentia. Era pequena e só pensava “que teria feito de errado?”.
Aprendeu a palavra "técnicos" (enquanto outras crianças aprendem palavras mais doces) e falou com muitos. “Agora, vai ficar bem”, ouviu dizer. Aprendeu a contar e a recontar a sua história e, desde pequena, a "frequentar" reuniões.
A vida que doía foi ficando distante mas era sua. O dia passou a ter horas certas. O tempo passava rápido. Mas tinha de esperar. O sistema não sabe que uma criança tem pressa. E viu que a sua vida passou a ter prazos. Passados uns meses, as pessoas voltavam. Fizeram menos perguntas.
Ela tinha um muro no meio da sua vida que os outros não viam. De um lado, a sua história que doía. Do outro lado, o presente indefinido que balouçava na sua cabeça, como geleia num frasco grande demais. Do lado do presente, aprendeu a falar com terapeutas, técnicos, assistentes sociais… nisso ninguém a batia. Os amigos da escola falavam com primos, com tios, com o dono da mercearia…
Na escola, as coisas eram complicadas. Sentia-se perdida na matéria mas também não tinha de se esforçar porque sabiam quem ela era e ela também. Era a única que chegava à escola numa carrinha com letras escritas. O tempo passou e as letras começaram a fazer-lhe impressão. Tinha medo que achassem que era vergonha, como era.
Um dia, foi a casa de uma amiga da escola e não viu lá extintores, nem mangueiras de incêndio como tinha no centro. E perguntou se os bombeiros nunca foram lá a casa fazer um “simulacro” (não terá dito bem a palavra mas os pais da amiga perceberam e disfarçaram).
Passaram mais meses, agora, os técnicos quase não lhe fazem perguntas. “Está a ficar bem”, ouviu dizer. Todos os dias, à noite, as auxiliares iam embora e vinham outras. De manhã, já eram outras que a levavam na carrinha. Ela ficava sempre no centro mas as auxiliares entravam e saíam. Aprendeu a palavra "turnos".
Em casa da amiga não era assim que funcionava, os pais não mudavam durante o dia e a noite. Também nunca chegou a saber se lá em casa da amiga tinham feito um simulacro. Todas as semanas a amiga dizia que ia fazer compras de coisas à loja, com a mãe, para fazer a comida. E que, às vezes, ia comprar brinquedos e roupa.
Na instituição, as coisas para fazer a comida chegavam numa grande camioneta. Eram as cozinheiras de farda que guardavam as coisas na dispensa. Em casa da amiga, podiam abrir o frigorífico mas no centro era enorme e não podia entrar na dispensa porque era proíbido.
A mãe da sua amiga usava um avental, como o que ela também usava quando brincava na casa das bonecas do ATL. Porque é que no centro a moda das cozinheiras era andar de farda? A roupa e os brinquedos chegavam ao centro, através de várias pessoas. Às vezes, vinha ajudar a levar os sacos para o quarto da roupa. Afinal, era tudo simples demais, não precisava de ir à loja.
No centro, as auxiliares eram simpáticas mas ninguém se deitava ao seu lado, a ler um livro. Eram muitos para deitar. A amiga da escola contou-lhe que, numa noite, tinha-se levantado e foi para o meio da cama dos pais porque teve um pesadelo. E ela ficou a pensar para onde poderia ir se um dia se levantasse também de noite. Talvez para a lavandaria que é onde estão as auxiliares a dobrar a roupa e a passar a ferro.
Passaram meses e, um dia, vieram outra vez os técnicos ao centro de acolhimento. Já os conhecia mas não sabia bem se eram terapeutas ou assistentes sociais. Tinha de falar com tantos técnicos que até confundia os nomes.
Nesse dia, chovia. Foram ter ao quarto e ficaram a conversar uns com os outros. Ela subiu para uma cadeira e ficou a olhar para a janela. Não se lembra de lhe terem feito perguntas. Mas lembra-se de ter ouvido dizer: “a Luísa, está bem!”.
Eles não viram mas se tivessem olhado do lado de fora da janela, tinham notado que a Luisa tinha a sua vida embaciada. De um lado, a sua história de menina em risco que ainda doía e que era a sua. Com o tempo até idealizou que era melhor do que tinha sido. Do outro lado, o presente incerto, sem ninguém por perto ou melhor com demasiadas pessoas por perto.
No meio da sua vida sentia o muro alto que a separava em duas. Quem poderia desembaciar a sua vida? Agora, tinha coisas que não tinha mas não podia correr no meio da noite para a cama de ninguém.
Naquela visita, naquela reunião e naquele relatório foi decidido: “A Luísa vai continuar aqui, está mesmo bem!”.
Passaram mais meses. A Luísa tinha-se transformado de uma “menina” num “caso”. Que é assim que são tratadas as meninas nos processos. E o “caso” da Luísa estava a correr como tinha de correr. Da próxima vez, já não vieram e bastou enviar um fax. Havia mais casos a tratar e não sobra tempo.
Depois, passaram meses e anos. A Luisa passou a ser um “caso”, entre as 8.142 “crianças invisíveis” que vivem em instituições, em Portugal!
Está no dossier técnico, com as assinaturas todas… não se pode fazer mais nada, dizem, e há mais casos urgentes para tratar.
Mas um “caso” não é uma vida!
Não haverá mesmo mais nada a fazer?
Realmente, o mundo é imperfeito! Mas para as crianças não deve e não pode ser! Está na hora do país e dos organismos nacionais começarem a pensar, a sério, na solução do acolhimento familiar e em abraços!
Somos o país com um dos piores retratos na Europa (com mais de 96% de crianças institucionalizadas) que mancha a imagem dos portugueses que são um dos povos mais solidários do mundo. É importante que cada um de nós não se conforme. Juntos podemos fazer a diferença, sensibilizando o Sistema de Proteção Português a mudar de mentalidade e de forma de atuação.
Uma luz e um sinal de esperança. Já encontramos, formamos e acompanhamos uma bolsa de famílias de acolhimento de qualidade. O seu valioso papel é cuidar e educar uma criança até poder regressar para os seus pais, ou até ser adotada ou até ser maior. Já acolhemos mais de noventa crianças que não precisaram de ser institucionalizadas e continuamos a trabalhar por esta causa...
MISSÃO PIJAMA
Serviço de Acolhimento Familiar
MUNDOS DE VIDA
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