“A infância é o melhor capital de uma sociedade”, afirma educador espanhol

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, o
educador aponta que a riqueza do mundo infantil fica comprometida
 quando os adultos tentam estabelecer uma cultura que não pertence
 às crianças, iniciando um processo de imposição sobre o que é certo
 ou errado no mundo, no qual o adulto sempre se apresenta enquanto
ser autoritário e superior.
“A infância é o melhor capital de uma sociedade”
Para o educador, mesmo que o mundo apresente hoje novos arranjos
 e dinâmicas sociais, a escola e a cultura permanecem cristalizadas em
modelos passados. Para ele, a infância é o maior capital cultural de uma
 sociedade e, por isso, deveria estar presente no planejamento de todas
 as políticas públicas. ”A infância é o melhor capital que uma sociedade
 possui. O adulto perde a capacidade de fantasiar, de criar, de sonhar,
que existe na capacidade lúdica da infância”.
Muñoz diz ainda que algumas palavras utilizadas para descrever o mundo
 infantil vêm carregadas de inverdades, sustentando algo que as crianças
 não são. “A própria palavra infância – que etimologicamente significa
 ‘aquele que não fala’ -, é uma mentira, pois na infância se fala muito
e de variadas maneiras”. As crianças, porém, não possuem espaços
para participação como os adultos, que contam com a possibilidade
de atuar e opinar em sindicatos, partidos políticos e associações.
A maioria das crianças convive diariamente com frases como”não pode,
não sabe”. Para o professor, essas são atitudes dos adultos que não
reconhecem que a infância é o melhor caminho para a construção de uma sociedade. ”É mentira quando dizem que a infância é o futuro do mundo.
Não há futuro se não há presente e elas são, vivem e criam esse presente”,
diz o educador, criticando a ausência de políticas públicas que estimulem a participação ativa e reivindicações das crianças.
O professor aponta ainda que a maioria dos espaços educativos se
configuram como locais reguladores da própria infância.  Para ele,
é importante que os adultos acreditem mais nessa fase da vida, para
encorajar as crianças de que elas são capazes de alcançar seus objetivos.
“A primeira vez que uma criança entra em um espaço e percebe que as
 pessoas acreditam nela, ela também começa a crer que é capaz. Ao fazer
 o contrário, estamos produzindo crianças que não creem nelas mesmas
e não creem nos outros. E essas crianças serão adultos que não creem
neles próprios e nos demais, repetindo incessantemente esse ciclo”.
Leia a entrevista na íntegra abaixo:
Centro de Referências em Educação Integral: O que é a Infância?
 E qual a importância das crianças no mundo?
César Muñoz: A criança é o ser humano mais autêntico, menos manipulado
 e mais espontâneo. Desde que nasce, o ser humano já é capaz de
compreender e se comunicar com o mundo em que vive. À medida
que as crianças crescem e começam a se relacionar com os adultos,
vão recebendo diferentes formas de pressões e formatações, a partir
de uma série de mentiras que vão desfazendo a infância, e formatando
as crianças em uma ordem social hegemônica.  Uma criança e um adulto se comunicam, mas a comunicação por parte do adulto sempre se coloca
superior à criança. Para mim, uma criança é uma fonte de provocação de
vida, de conhecimento, de inovação e de perguntas de investigação. Um
ser humano criança tem que ter direito a experimentar e participar, levando
essa investigação e provocações à sociedade. Mas, é claro que o mundo
adulto não permite e busca sempre que possível desqualificar ou minimizar
 a participação das crianças. E os adultos fazem isso por medo, medo
 de perder a autoridade e terem que ver como também foram produtos
dessa mesma construção social.
CR: Qual é o papel da educação na infância?
César Muñoz: A educação deve pensar a infância de forma integral. A
educação da cultura dominante tem pânico da infância, impossibilitando
as crianças de chegarem a seus objetivos. Estamos em uma nova concepção
de mundo, mas a educação e cultura ainda são arcaicas e obsoletas.
A infância tem que estar no desenho de todas as políticas públicas, 
não só aqueles que parecem diretamente ligadas à educação, mas em 
todas, seja no urbanismo ou na economia.
CR: Quais são os maiores desafios da infância hoje? 
César Muñoz: A criança é uma fonte de provocação e de surpresas.
Mas há muitas mentiras a partir das palavras usadas para defini-la. A
 primeira mentira é a palavra infância, que etimologicamente significa
 “aquele que não fala”. Sabemos que isso é uma mentira, já que
na infância se fala muito. Elas não têm espaços de diálogo como 
têm os adultos,representados por exemplo, por sindicatos, por partidos, 
associações.
 Outra mentira é que a infância é o futuro do mundo. Não há futuro se
não há presente. São também chamados de alunos, etimologicamente
 aqueles que não têm luz. E, a criança tem uma luz enorme, muito forte,
provocadora. Um saber único e não formatado pelas convenções e
normas sociais. Da mesma forma, usa-se a palavra adolescente, que vem de “adolescer”, na origem da palavra, a quem falta algo. Ora, se esse é o
significado da palavra, então somos todos adolescentes, sempre seremos
incompletos, sempre nos faltará algo.
CR: Como as crianças são tratadas e como deveriam ser tratadas?
César Muñoz: Tudo é “não sabe, não pode”. A infância é o melhor capital
 que uma sociedade possui. Me chateia que todo adulto nasce como um
criança, mas perde a capacidade de fantasiar, de criar, de sonhar, por meio
 da capacidade lúdica da infância. Perdemos a infância e também não
queremos uma infância, nos convencendo em sermos obsoletos. No mundo
há dois tipos de adultos, adultos crianças mal educados e adultos crianças
 bem educados. Os mal educados repetem o sistema e os bem educados
percebem a intencionalidade das mentiras apresentadas pela cultura
dominante e viabilizam espaços para reconhecer as crianças integralmente,
 tomando-as como atores sociais fundamentais para a reconstrução da 
nossa sociedade.
CR: Como são os espaços destinados à infância?
César Muñoz: A maioria dos espaços educativos e também das famílias
são espaços reguladores da infância. Se o ser humano vive um ciclo
 constante que diz que ele “não sabe” e “não pode”, vai crescer
acreditando que não sabe e não pode. A criança sabe que os adultos 
não creem nela.
A primeira vez que entra em um espaço que sente que acreditam nela,
ela começa a crer nela mesmo e nos demais. Esse é um ciclo que se repete permanentemente. Essas crianças que não acreditam nelas próprias
serão adultos assim, que farão o mesmo com as suas crianças. Não
culpo os adultos, essa é uma construção social. Mas, é preciso identificar
 que há intencionalidade nesse processo. Estamos formando crianças
de acordo com um padrão do capital, que quer a hegemonia, que
 é contra a diversidade e a criatividade que as crianças trazem. Se as
escutássemos e se efetivamente elas tivessem poder de escolha e decisão
na sociedade, certamente transformaríamos a ordem e a norma social
 vigente.