Escrito por Teresa Diogo

Página 1 de 3
Ter uma energia inesgotável, ser irrequieto e desatento não é sinónimo de hiperatividade. Há que evitar rótulos supérfluos e apostar no diagnóstico criterioso. Uma criança hiperativa é muito mais do que um pequeno ser ligado à corrente: é como um carro sem travões.
Sempre que a professora do João precisava de identificá-lo no recreio, no meio dos outros meninos, já sabia que bastava procurar pela criança que, sem motivo aparente, passava o tempo a fazer rodas e pinos. Era uma criança “muito ativa e elétrica”, mas a agitação motora em si “não nos preocupou”, conta o pai. Aos 10 anos, por vias das dúvidas, decidiram fazer um primeiro despiste, consultando “um médico recomendado”, que lhes aliviou as dúvidas e o peso nos ombros: não havia motivos para preocupação, o João era “apenas uma criança feliz”. Mas no final do 5.º ano, após queixas da escola relacionadas com “falta de concentração, resultados escolares baixos devido à distração e impulsividade”, João voltou ao médico. Especialista diferente, diagnóstico contrário. “Ao fim de três perguntas”, receitou-lhe medicação. Só quase “um ano depois”, já com 12 anos, é que João foi “submetido a vários testes” que indicavam “distúrbio de défice de atenção com hiperatividade moderada”. A partir daí e durante um ano, além da medicação, João passou a contar com o apoio de um psicólogo, que acompanhava também os pais. Foi uma “experiência interessante”, mas na realidade os problemas do João “não foram resolvidos”.
O caso do João é apenas um entre muitos, com diagnósticos confusos, contraditórios e, por vezes, até errados. Começam com as suspeitas dos pais e dos professores, a procura de uma explicação para a agitação excessiva e as dificuldades na aprendizagem e a justificação para o rótulo de “miúdos problemáticos”.
Perceber se existe apenas uma energia fora do comum ou se a criança tem, de facto, Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA) é essencial, mas nem sempre é simples. A dificuldade começa na procura de ajuda. “Os pais continuam a sentir o desespero sobre a quem devem recorrer”, afirma Linda Serrão, presidente da Associação Portuguesa da Criança Hiperativa (APDCH), que considera que a “escola tem que estar mais bem preparada para apoiar estas crianças com uma equipa multidisciplinar, em que há um psicólogo clínico, mas também um psicólogo educacional e um técnico de psicomotricidade.” No entanto, lamenta, “o Ministério da Educação ainda não acordou no sentido de ver a importância do psicólogo educacional, que é fundamental, já que trabalha não só a parte de casa e da família, como também a escola”.
Na opinião de Linda Serrão, que é hiperativa e mãe de três rapazes também eles hiperativos, “a falta deste apoio leva a que haja crianças mal avaliadas, mal medicadas, por vezes nem precisam de medicação e estão a fazê-la e vice-versa”. Nestes casos, explica, o que por vezes acontece é que “há um acontecimento no seio familiar, como um divórcio ou uma morte, que perturba a criança, mexe com o seu temperamento, mas isso não é hiperatividade”. No entanto, “são rotuladas como tal”. Erradamente.
A importância do diagnóstico correto
Como em qualquer doença, física ou psicológica, o diagnóstico “deve ser feito por um profissional de saúde específico e capacitado”, sublinha Mafalda Navarro, psicóloga clínica, na Clinica da Criança e do Adolescente. Neste caso, a criança “deverá ser avaliada por um neurologista ou psiquiatra, que irá exaustivamente reunir toda a informação necessária para chegar a um correto diagnóstico, sendo indispensável ao longo do processo falar com os pais e educadores, ou outras pessoas que se considere relevantes na vida da criança, assim como utilizar uma bateria completa de testes psicológicos ou neuropsicológicos que complementem a informação recolhida”.
Tal como a presidente da APDCH, também Mafalda Navarro sublinha que para que seja atribuído um diagnóstico correto de PHDA não “é suficiente que os pais da criança ou a própria escola denotem uma agitação excessiva”. Esse comportamento “pode ser apresentado de uma forma circunstancial e dever-se, por exemplo, a uma crise familiar momentânea ou a alguma alteração na rotina da criança”.
A rotulagem que é feita por professores, pais ou amigos “tem um peso negativo, uma conotação muito negativa”, lembra Carlos Filipe, psiquiatra e diretor científico do Cadin (Centro de Apoio ao desenvolvimento infantil). Por isso, são de evitar as rotulagens supérfluas e superficiais. O diagnóstico da PHDA é um “diagnóstico médico, segundo critérios rigorosos”, sublinha o especialista, ressalvando, contudo, que “não há nenhuma análise, nem nenhum exame para diagnosticar PHDA”. O diagnóstico é clínico, “com base na história da pessoa, que é fundamental, e pelo comportamento atual”. A PHDA é uma perturbação do desenvolvimento, portanto, “não pode ser uma coisa que apareceu no mês passado, quando o menino mudou de escola”. Uma PHDA mal diagnosticada “trata-se de um rótulo muito perigoso que irá acompanhar a criança durante todo o seu desenvolvimento, podendo condicioná-lo”, assegura Mafalda Navarro.
Prevalência não está a aumentar
Atualmente, nada aponta para que exista um maior número de crianças com hiperatividade. Duas coisas, porém, são hoje “completamente diferentes em relação ao passado”: por um lado, a “capacidade de diagnóstico” e, por outro, “as exigências que são feitas a essas crianças e adolescentes”, refere Carlos Filipe, lembrando, por exemplo, que os 12 anos de escolaridade obrigatória são “um acréscimo de dificuldade brutal para quem tenha uma PHDA”. Os sinais e sintomas, que noutras circunstâncias passariam desapercebidos, começam assim a ser sinalizados.
Os números conhecidos referem que a prevalência da PHDA “ronda os cinco por cento. Em cerca de metade dessas crianças, persistem “sinais e sintomas incapacitantes para o resto da vida”. Ou seja, a prevalência nos adultos rondará os 2,5 por cento, mas “aqui o subdiagnóstico é muito maior”.
O Ministério da Educação “obriga a que os nossos filhos façam 12 anos de escolaridade obrigatória, mas não há um curso profissional para eles”, lamenta Linda Serrão. O que acontece, adianta, é que “estas crianças ditas problemáticas são vistas aos olhos dos outros pais como os ‘burrinhos’”. Na opinião desta mãe, “o que nós precisamos é de uma coisa simples para eles, como um curso profissional e isso não existe”. Ou seja, “temos aqui um problema grave”, porque eles ficam a repetir ano após ano”. Linda Serrão dá o exemplo do seu filho mais novo, Rodrigo, 12 anos, que “ia à escola, mas escondia-se lá dentro e faltava às aulas”. A nível escolar, Rodrigo “não tem qualquer interesse”, mas vai ser obrigado a cumprir os 12 anos de escolaridade. “Como?”, pergunta a mãe. “Ele gosta do lado prático da vida e é isso que temos de estimular, mas o Ministério da Educação não dá alternativas”, lamenta.
Os filhos de Linda Serrão, Rodrigo, 12, Bernardo, 16, e Ricardo, 20 anos, são hiperativos, mas são “todos diferentes, cada um tem as suas características”. O mais velho é “a pessoa mais desatenta que eu conheço”, mas conseguiu aprender a lidar com a situação, “tem uma parte visual, de memorização, muito trabalhada”. Neste momento, está a fazer o 11º e 12º anos à noite “não leva um livro, um caderno ou uma caneta para a escola”. Bernardo tem “a parte auditiva mais trabalhada” e faz coisas como “aprender a tocar guitarra pela internet”. Todos tomaram ou tomam medicação para a PHDA e foram ou são acompanhados por um psicólogo, além do trabalho desenvolvido com a mãe que, por ser também hiperativa, conseguiu transmitir-lhes algumas estratégias para lidar com a situação.
Expulso da escola
Além de não existirem alternativas viáveis a nível escolar para as crianças e adolescentes com PHDA que enfrentam dificuldades de aprendizagem acentuadas, há ainda outro problema grave que os pais têm de enfrentar: “as escolas fecham as portas aos meninos diferentes”, alerta Linda Serrão. Por isso, enquanto presidente da APDCH, aconselha os pais a “mentir temporariamente à escola e só dizerem que o filho tem PHDA depois de a matrícula se confirmar”.
Os pais de João não mentiram quando matricularam o filho num conhecido colégio particular em Lisboa, que lhes assegurou terem uma equipa de psicólogos para lidar com estes problemas, mas, terminado o ano, foram “convidados” a não renovar a matrícula.
“É claro que o João deve ter feito das suas para chegar esta situação”, admite o pai, mas “a atitude do diretor não foi correta, porque primeiro nos disse que ele devia mudar de turma para não se distrair tanto e depois já não tinham vaga”. Além disso, conta, “só no último trimestre é que o João teve apoio da psicóloga e só no fim do ano nos sugeriram pedopsiquitras que tinham colaborado com o colégio com outros alunos com bons resultados”. Para este pai, ficou a questão: “porque é que isto não foi sugerido antes?” O problema, refere, é que “estas crianças não podem ser julgadas pela mesma bitola que se usa para as outras e, nesse sentido, continuo a pensar que a maior parte dos colégios não está preparada nem interessada em crianças problemáticas”. No entanto, elas “também têm direito a uma educação”.
João nem sequer é dos miúdos mais difíceis. Relaciona-se muito bem com os colegas, “é muito sociável e, de um modo geral, faz amigos rapidamente e com à vontade”. Esta é, aliás, uma área “que não nos preocupa nada”. “É amigo dos seus amigos e vê-se que eles também gostam dele”. Os seus maiores desafios são “conseguir lidar com as principais características de um adolescente com PHDA, que são agitação motora, desatenção e impulsividade, ou seja, capacidade para controlar essa agressividade”. Como geralmente acontece com estas crianças e adolescentes, João não é “fã do estudo” e, como tal, é sempre “com muita resistência que cumpre os seus deveres”. Há temas que o interessam e para os quais tem facilidade, “como o Inglês, as Ciências e a Educação Física”, enquanto outros são um quebra-cabeças, “como a História”. Apesar das dificuldades, da falta de apoio e de não ser “um aluno brilhante”, João tem passado todos os anos e, agora numa escola pública, encara mais ano de aprendizagem.
Página 3 de 3
Informação é essencial
“Verifica-se realmente uma tendência para marginalizar crianças com este tipo de distúrbio, pois apresentam comportamentos bastante desafiantes e cansativos para os seus cuidadores”, confirma Mafalda Navarro, salientando, contudo, que se trata de uma “perturbação neurológica, que necessita de um enorme apoio da sociedade”. Neste sentido, aconselha a psicóloga, deverá ser feito um “trabalho exaustivo junto dos familiares mais próximos, no sentido de fornecer informação adequada”. Os pais são figuras “fundamentais” na medida em que podem “auxiliar os filhos a concentrarem-se e a aprender a adotar comportamentos mais tranquilos e estáveis”. Para isso, devem “ser dadas sugestões que sejam úteis no dia-a-dia, como regras de educação, estabelecer horários com tarefas e ainda acompanhar diariamente a criança nas suas obrigações de modo a minimizar as dificuldades de concentração”.
No mesmo sentido, deve ser fornecido à escola informação “para trabalhar com estas crianças, na medida em que representa também um eixo fundamental na sua adaptação”. São crianças que precisam efetivamente de uma “atenção especial, como por exemplo, estarem sentadas próximo do professor ou mesmo ter um tipo de trabalho diferente dos outros alunos, adaptado às suas dificuldades”.
Ser pai de uma criança com PHDA não é fácil, mas também “não é um drama”, afirma o pai de João. “Eu costumo dizer que ser pai implica adquirir automaticamente uma grande dose de paciência e com uma criança hiperativa essa dose tem de ser reforçada no dia-a-dia”. Além disso, “o João também tem um mundo de coisas boas, um grande coração e uma capacidade infinita para não deixar que nada o deite abaixo”. Para ele, “a vida é mesmo muito boa e acredito, como nos disse o primeiro médico, que ele seja mesmo muito feliz”.
Não há “ varinhas mágicas” para lidar com crianças com PHDA, mas “não dar importância excessiva a situações que, no fundo, não a exigem e não abdicando de lhes passar os valores fundamentais, é importante perceber que o cérebro deles funciona a outra velocidade e com outras prioridades e complicações”. Como pais, “não podemos nunca desistir desta viagem e temos de continuar a amá-los e ajudá-los, já que se nós não o fizermos então é que a integração social deles e respetiva vida adulta pode ficar mesmo comprometida”.
Além disso, a definição de um tratamento adequado é “indispensável” para que a criança não cresça “estigmatizada, como alguém com um comportamento disruptivo e desafiante”, para que não prejudique o “seu desempenho escolar e social” e ainda para “minimizar as possíveis consequências futuras na sua vida, como comportamentos agressivos, perturbação da personalidade anti-social, perturbação da conduta, abandono escolar precoce, abuso de álcool e drogas, depressão, divórcio, entre outros”, refere Mafalda Navarro.
MEDICAÇÃO AINDA ASSUSTA
É fundamental que a PHDA seja entendida como um “problema de saúde e não como falta de disciplina”. O seu tratamento inclui o “uso de medicação específica, assim como acompanhamento psicoterapêutico, tanto para a criança como para os familiares e professores que a acompanham”, sublinha Mafalda Navarro. Esta psicoterapia torna-se “fundamental para a criança, na medida em que a vai ajudar a lidar com os diversos sintomas”. A PHDA é tratável, lembra Carlos Filipe, salientando que “80 a 90 por cento dos casos são resolúveis, o que é uma coisa extraordinária”. No entanto, admite, existe ainda um “grande estigma em relação ao tratamento farmacológico, provavelmente por saberem que é um psicostimulante”. Carlos Filipe assegura que o metilfenidato (princípio ativo da medicação usada na PHDA) “não causa qualquer dependência”. É dos fármacos “mais antigos no mercado e, em termos de utilização, é daqueles em que temos mais experiência”. Para que a adesão ao tratamento seja boa, é essencial “explicar aos pais os efeitos secundários (porque os há), como a perda de apetite ou a insónia”, refere o psiquiatra. Além disso, acrescenta Linda Serrão, “tirar a medicação ao fim de semana ou nas férias é um erro”. Porque a hiperatividade “não vai de férias nem de fim de semana e os pais também precisam de descansar para estarem bem psicologicamente”.
SINAIS E SINTOMAS DA PHDA
Existem três grupos onde os sinais e sintomas da PHDA podem ser incluídos: a hiperatividade, isto é, o excesso de atividade motora (claramente exagerada quando comparada com a generalidade das crianças da mesma idade); a impulsividade, isto é, agir sem pensar, de forma precipitada e imprudente ou ser mais impaciente do que seria de esperar para uma criança da mesma idade; o défice de atenção, isto é, a grande dificuldade em fixar e manter a tenção e a concentração, sobretudo quando se trata de assuntos que a criança considera menos interessantes ou mais monótonos.
O diagnóstico da PHDA é clínico e deve ser feito por “médicos experientes”, aconselha Carlos Filipe, acrescentando que “há muitos bons médicos a trabalhar nesta área, sobretudo ligados à neuropediatria, e temos bons serviços em hospitais públicos como o S. Francisco xavier, o Garcia de Orta, o hospital da Estefânia ou o de Loures”. O principal, garante, é “consultarem alguém que possa orientar e diagnosticar bem”. Na grande Lisboa existe ainda o Cadin (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil) e o Diferenças (Centro de Desenvolvimento Infantil), especializados no apoio às perturbações do desenvolvimento, e a Clínica da Criança e do Adolescente.
A Associação Portuguesa da Criança Hiperativa (
www.apdch.net/) nasceu para dar resposta às inquietações dos pais, aconselhá-los e ajudá-los a lidar com a situação. Presta apoio a nível psicológico, psicopedagógico e de reeducação e terapia psicomotora. “Qualquer solicitação que nos seja feita, por telefone ou por e-mail, nós ajudamos, ninguém fica sem resposta”, garante a presidente da APDCH.