sexta-feira, 27 de junho de 2014

Uma escola para muitas falas

Uma escola para muitas falas

Reportagem // Silvana Azevedo  

Em um país com as dimensões do Brasil, a diversidade linguística está presente em vários contextos escolares

"May I have pão com butter?”; “Já cleanei the toys!”. Frases assim são comuns em uma sala de aula que reúne aprendizes em escolas bilíngues inglês-português. A coordenadora do Kids (equivalente à educação infantil), Jacqueline Cappellano, conta que a mistura entre as duas línguas é normal na Escola Internacional Alphaville, em São Paulo, instituição que atende crianças a partir dos 2 anos. “É o que denominamos code-mixing (mistura de códigos)”, explica. “Faz parte do processo de aquisição. Respeitamos esse tipo de comunicação, mas oferecemos o modelo correto para que a criança aos poucos se aproprie da forma exata.”

A escola tem 705 alunos, sendo 115 estrangeiros — 40 matriculados na educação infantil. Boa parte dos estudantes, filhos de executivos ou empresários que estão no Brasil para viver apenas alguns anos, já passou por colégios bilíngues. Os demais têm pais brasileiros que buscam um ensino capaz de garantir a aprendizagem de uma segunda língua já nos primeiros anos de vida. Na Alphaville, independentemente da nacionalidade e do fato de terem tido contato com a língua inglesa, meninos e meninas com idade entre 2 e 4 anos fazem uma imersão no idioma estrangeiro. “A comunicação com os alunos é feita somente em inglês, mas as crianças podem falar na língua materna”, diz Ricardo Chioccarello, gestor da escola. Para garantir a fala sem qualquer sotaque, ele conta com 15% de professores falantes nativos.

Quando a criança ingressa na escola aos 5 anos, entra em cena o professor de língua portuguesa. A transição é tranquila, atesta Patrícia Michelino de Oliveira Cross, mãe de Vitória, de 5 anos, e Pedro, de 3 anos, ambos matriculados na escola. “Quando viajamos para fora do Brasil, a Vitória se comunicou muito bem em inglês e agora que ela está entrando na alfabetização em português não faz confusão”, afirma.

Algo parecido vivenciou Ana Cláudia Lucena Rocha Nóbrega, que mora em João Pessoa (PB) e passeou pelos parques da Disney com o filho Lucas, de 6 anos, aluno da escola Maple Bear desde os 4 anos. “Ele ficou muito à vontade, entendeu bem as narrações em inglês”, conta. A rede de ensino de origem canadense deu início às atividades no Brasil em 2005. Hoje possui 56 escolas e tinha 6.700 alunos matriculados em 2013, com a expectativa de chegar a 9 mil este ano. O Brasil ocupa o topo do grupo Maple Bear em número de escolas ao redor do mundo. A segunda posição fica com a Índia (45 unidades), seguida da Coreia do Sul (13 escolas).

Tamanho sucesso pode ser creditado a um conjunto de fatores que inclui o programa de imersão total na língua inglesa, desenvolvido no Canadá, à capacitação de professores, proporcionada pela própria rede, e ao suporte da equipe canadense, que acompanha o trabalho de perto, com visitas constantes para nivelar a qualidade de ensino com o resto do mundo. “A rede preocupa-se com a criança como um todo”, destaca Cintia Sant’Anna, que ocupa o cargo de program operacional manager da rede. “Não abrimos mão das exigências curriculares brasileiras e das especificidades regionais”, observa.

Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP, Elizabete Flory defendeu sua tese sobre as influências do bilinguismo precoce no desenvolvimento infantil. “A melhor idade para ser exposto a uma segunda língua depende do intuito. Quanto mais cedo, mais fácil será a criança falar sem sotaque, mas boa proficiência dá para adquirir mesmo aprendendo mais tarde”, afirma. “Na primeira infância, há uma grande chance de a criança adquirir algumas funções da língua como se ela fosse um nativo”, afirma Elizabete. Um ponto que a especialista considera importante no caso da imersão em um segundo idioma é que, para algumas crianças, pode ser fundamental ter por perto alguém que fale sua língua materna. “Ir para a escola já configura um desafio, então esse início na escola bilíngue deve ser feito com muito cuidado”, justifica.

Imigração
A trajetória das escolas bilíngues no Brasil tem sua história entrelaçada com a chegada maciça dos imigrantes que desembarcaram no país entre o final do século XIX e o início do século XX. “Os colégios bilíngues mais antigos foram pensados para comunidades expatriadas”, conta a pesquisadora Selma Moura, do programa de doutorado em Linguística Aplicada da Unicamp, professora do curso de pós-graduação em didática para o ensino bilíngue do Instituto Singularidades e criadora do blog educacaobilingue.com. 

Esse foi o caso do Colégio Alemão Humboldt, fundado em 1916, onde atualmente 70% dos estudantes não têm origem alemã e, a partir da década de 1980, deixou de seguir a metodologia de imersão que o norteou desde a origem. “O ideal é conviver num ambiente em que os dois idiomas tenham a mesma importância”, afirma o diretor geral, Everton Augustin. Isso significa que, nas salas de aula destinadas às crianças de 3 e 4 anos, há uma pessoa de referência na língua alemã e outra na língua portuguesa. 

Selma Moura explica que, com a diminuição da chegada dos imigrantes europeus, entre as décadas de 1940 e 1950, as escolas bilíngues passaram a atender também alunos brasileiros. A partir daí, o perfil mudou muito. A Escola Cidade Jardim Play Pen, inaugurada em São Paulo em 1980, é um exemplo. A instituição, que nasceu para suprir a demanda da comunidade estrangeira, hoje conta com 90% de alunos brasileiros.

A pesquisadora aponta a década de 1990 como um período de grande proliferação das escolas bilíngues no Brasil. De acordo com um levantamento feito por ela em 2013, há 130 instituições de ensino particulares em funcionamento, das quais 81 estão localizadas no estado de São Paulo, sendo 63 na capital. O idioma predominante como segunda língua é o inglês.

Diversidade e inclusão
Em quase todo o Brasil, com raras exceções, aos pais que desejam para os seus filhos a aprendizagem em uma segunda língua restam as instituições particulares, com mensalidades geralmente em torno de 2 a 3 mil reais. Este ano, o estado do Rio de Janeiro inaugurou três escolas públicas bilíngues. Em cada uma delas, as aulas são ministradas em português e espanhol, francês ou inglês, mas as unidades atendem apenas alunos do ensino médio. Também há experiências como a do município catarinense de Pomerode (veja detalhes na página 41).

Selma destaca a necessidade da oferta de educação pública bilíngue pelo fato de o Brasil viver um novo momento no cenário imigratório, que inclui a grande presença de refugiados. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, em 2012 havia no Brasil cerca de 4.600 refugiados reconhecidos pelo governo, sendo que os pedidos de refúgio não param de crescer, dado que se reflete também nas salas de aula. “Há algumas escolas públicas em São Paulo que chegam a ter 40% de crianças imigrantes”, revela Selma, que apurou o percentual em sua pesquisa de doutorado. Conforme o Censo Escolar de 2012, o Brasil conta com 31.097 matrículas de alunos estrangeiros entre as redes pública e privada.

O foco dos estudos de Selma está no Bom Retiro, um bairro operário da capital paulista que, ao longo do tempo, acolheu diversos povos e hoje recebe um fluxo importante de latino-americanos, sendo os bolivianos em número mais expressivo. A pesquisadora coletou depoimentos que revelam as angústias das famílias que sofrem com as diferenças. “Tenho relatos de bullying, como o de crianças que precisam pagar uma espécie de pedágio para não apanhar e ser autorizadas pelos colegas a entrar na escola”, exemplifica. Para ela, a existência de escolas bilíngues e a valorização das diferentes culturas poderiam facilitar a inclusão dos estrangeiros.

Na Creche e Pré-Escola Oeste, da USP, a diversidade não é só respeitada, mas também celebrada, e já ganhou um espaço fixo no calendário escolar. Trata-se da Semana Cultural, evento que acontece no mês de setembro em parceria com as famílias e a associação de pais e funcionários. Grupos de música, dança e teatro peruanos, colombianos e brasileiros apresentam-se para as crianças em performances que não se limitam a trupes profissionais. Os familiares também participam, ora entoando canções típicas, que têm um significado afetivo, ora apresentando uma comida especial, que remete aos sabores do país de origem.

A creche pública atende 100 crianças com idades que vão de 4 meses a 6 anos, filhas de funcionários, professores e pesquisadores brasileiros e de diversas partes do mundo, o que se reflete em um número considerável de crianças estrangeiras nas salas de aula. “A maioria delas é bilíngue português/espanhol, pois geralmente os pais são oriundos da América Latina”, diz a psicóloga Prislaine Krodi.

Além das influências da terra natal, muitas famílias trazem particularidades do idioma e da cultura maternos, assim como experiências de morar em países falantes de outros idiomas. Por isso, a instituição tem o acompanhamento constante da fonoaudióloga Mariangela Lopes Bitar, também professora da USP, e a presença diária da psicóloga.

Para amenizar o choque cultural, a creche estabelece um contato muito próximo com os pais e promove uma estratégia de inserção dos novos alunos. Também foram criados fóruns de discussão, um deles dedicado aos familiares das crianças, que dividem suas dúvidas, angústias e experiências em relação ao aprendizado da língua portuguesa.

Um pé lá, outro cá
Em muitas cidades brasileiras, é comum que os habitantes falem português e espanhol, assim como uma mistura das duas — o portunhol. Em locais como Santana do Livramento e Rivera, Chuí e Chuy, é possível estar com um pé no Brasil e outro no Uruguai. O mesmo ocorre ao longo da extensa fronteira do Brasil com países de língua espanhola. Nessas regiões, muitas famílias são formadas por pessoas de ambas as nacionalidades. Os habitantes de um lado e de outro misturam os idiomas e todos se entendem.

Com o objetivo de estreitar na área educacional os laços já estabelecidos informalmente no dia a dia, o Projeto Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira foi criado em 2005, inicialmente por meio de um acordo bilateral entre Brasil e Argentina, depois ampliado para incluir Uruguai, Paraguai e Venezuela. Nas escolas participantes do projeto, os professores de ambos os países realizam o planejamento das aulas em conjunto e ao menos uma vez por semana existe um intercâmbio entre as escolas de ambos os lados da fronteira.

A Escola Municipal Theodureto Carlos de Faria Souto, em Dionísio Cerqueira (SC), faz parte do programa desde o início, juntamente com a Escuela 604, localizada em sua cidade-gêmea do outro lado da fronteira, Bernardo de Irigoyen, na província argentina de Misiones. Segundo o diretor da escola brasileira, Mauro Prado, de 2005 a 2009 houve um incentivo maior ao programa por parte dos governos de ambos os países. Assim, as crianças argentinas puderam aprender um pouco sobre o nosso folclore, nossas festas e nossa língua. Em contrapartida, os professores argentinos trouxeram particularidades de sua língua, sua geografia e seus costumes. É o chamado “cruce”, que acontece duas vezes por semana.

Mauro Prado observa que é muito comum os argentinos falarem o português, até mesmo pelo alcance das novelas brasileiras. Do lado de cá, o educador entende que deveria haver uma atenção maior por parte do poder público, visto que a educação bilíngue e essa relação intercultural são preciosas, e os benefícios repercutem ao longo da vida inteira. “De 2009 até o ano passado, percebeu-se um abandono por parte dos governantes”, lamenta.

Ele afirma que na sua escola o trabalho manteve-se graças ao empenho da equipe de educadores, que abraçou o programa, muitas vezes até comprando materiais com recursos próprios, já que a instituição deixou de receber qualquer tipo de suporte por parte dos governos federais para o trabalho desenvolver-se. Este ano, porém, promete ser melhor, tendo em vista que a Universidade Federal da Fronteira Sul, por meio do campus de Realeza (PR), passou a apoiar o projeto na região que inclui Paraná, Santa Catarina e Misiones.

Antepassados
Partindo de Dionísio Cerqueira e seguindo aproximadamente 600 km na direção leste do estado de Santa Catarina, chega-se a Pomerode, onde o idioma mais falado e ouvido nas ruas é o alemão devido à forte presença de imigrantes. Ciente da importância da cultura alemã para a população, a Secretaria de Educação do município implantou em 2008 turmas bilíngues no ensino fundamental da Escola Básica Municipal Olavo Bilac. Em 2009, o programa foi expandido para a Escola Dr. Amadeu da Luz, onde todas as crianças matriculadas na educação infantil e no primeiro ano do fundamental recebem educação bilíngue. “O intuito dessa primeira etapa é proporcionar o contato com o alemão àquelas crianças que não falam a línguae reforçar o idioma naquelas que já conhecem”, explica a professora Ranice Dulce Trapp, da Escola Amadeu da Luz.

A partir do segundo ano do ensino fundamental, os pais podem decidir se o filho continua na educação bilíngue ou não. O interessante é que em Pomerode, para muita gente, o português é a segunda língua. É o caso de Lucas Vinicius Maske, hoje com 10 anos, que entrou na escola com 4 anos. “No início ele teve dificuldade, mas logo foi se adaptando”, conta a mãe do menino, Schirlei, que valoriza muito a cultura dos seus antepassados e faz questão que ela seja perpetuada na formação do filho. “Sempre seremos gratos pelo município ter adotado o ensino bilíngue para que a cultura germânica não seja esquecida”. E acrescenta: “Como seria bom se cada região do nosso Brasil, com toda a diversidade linguística, tivesse iniciativas como essa”.

Crédito da Imagem:
Foto: Eduardo A. Barcellos Corrêa

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