I
O
humorista americano Louis C.K. andou a arrastar-se durante 20 anos por bares,
palcos e programas televisivos de segunda categoria sem que ninguém lhe
prestasse grande atenção. Até que um dia foi pai, e num espetáculo ao vivo, em
meados dos anos 2000, decidiu tratar a sua filha por “cara de cu” (“ asshole ”, no original) e dizer que finalmente “compreendia os
pais que atiravam os seus miúdos para o lixo”.
A reação
estupefacta do público, algures entre o riso desconfortável e a falsa
indignação, foi a sua estrada de Damasco. Nos números de stand-up comedy que se seguiram à epifania, Louis C.K.
decidiu apostar cada vez mais na temática trauliteira-familiar, e aos poucos
foi abrindo a caixa de Pandora doméstica e a retirar mini-esqueletos do seu
armário, puxados à força de assholes, bitches e incontáveis fuckings dirigidos às próprias filhas.
O resultado foi
este: os pais começaram a rir-se em uníssono daqueles não-ditos tão sentidos,
que eles próprios imaginaram ter de esconder dentro de si e acorrentar às
masmorras do superego pela vida fora, fosse por convenção social ou por
vergonha pessoal. E com o passar dos anos, esse riso foi-se tornando cada vez
mais solto, cada vez mais livre e cada vez mais catártico — ao ponto de Louis
C.K., com o seu humor desregrado, desbragado e arriscadíssimo, ser hoje o mais
bem-sucedido comediante da América.
Como é que isto
aconteceu? Como é que aquele tipo ruivo, gordo, careca e semiobscuro, de quem
se mandavam links do YouTube às escondidas para os amigos pais se consolarem
enquanto tentavam adormecer o filho de oito meses pela oitava vez, se tornou
subitamente a nova coqueluche da comédia americana, com uma vasta coleção de
nomeações para os Emmys, graças à série Louie?
A explicação,
para um pai de quatro filhos como eu, é relativamente simples: Louis C.K. teve
a coragem de dizer aquilo que todos nós, homens heterossexuais e pais de
família, sentíamos cá no fundo mas não éramos capazes de verbalizar, mesmo
andando há muito a acumular frustrações pessoais e profissionais. A saber: que
o discurso sobre a paternidade está todo ele avariado e que ser pai, muitas
vezes (demasiadas vezes, até), não tem piada absolutamente nenhuma.
E, de repente,
já não é só Louis C.K. a tirar-nos desse armário. É também, por exemplo, Adam
Mansbach, graças ao sucesso planetário de um falso livro infantil chamado Vai Dormir, F*da-se (edição
portuguesa da Arte Plural), protagonizado por um pai desesperado que tenta
convencer o seu filho a adormecer através de versos tão subtis como:
O gatinho junto
à gata se aninha
E o cordeiro ao
pé da ovelha busca calor.
Estás
aconchegado na tua caminha,
Agora, f*da-se,
dorme por favor.
A Lua no céu
está a aparecer
E as estrelas
já brilham, meu amor.
Leio mais uma
história, pode ser,
Mas, f*da-se,
depois dorme, por favor.
Tanto na sua
versão em papel como na versão áudio original lida por Samuel L. Jackson, o
livro foi um enorme sucesso, ainda que na sua tradução portuguesa haja
demasiados asteriscos (o “fuck ” passa a um púdico “f*da-se”)
e a capa se desdobre em avisos cautelosos, não vá um pai narcoléptico
enganar-se no destinatário da obra: “Recomendado a pais com muito sentido de
humor”; “Não leia este livro aos seus filhos”.
Dispensavam-se
tantos pruridos. Os pais portugueses, tal como os pais americanos e todos os
pais do mundo ocidental, querem cada vez mais quebrar o discurso socialmente correto
e falsamente cor-de-rosa em relação à paternidade. Eles precisam disso, a bem
do seu equilíbrio mental, e eu próprio posso testemunhá-lo, tanto em termos
pessoais como profissionais: o mais bem-sucedido dos três livros para crianças
que escrevi até hoje tem como título O Pai Mais
Horrível do Mundo .
II
A
grande questão é: porquê? Porque é que andamos todos a sentir esta necessidade
de exorcizar, através do riso, os fantasmas das crianças presentes? O que é que
se passou com a paternidade para ela hoje ser um peso tão grande sobre os
nossos ombros? Afinal, a espécie humana não começou ontem a ter filhos, certo?
Certo. Só que
algures no último quartel do século XX, após a entrada em força das mulheres no
mercado de trabalho, da luta pela igualdade dos direitos, do crescimento da
geração baby
boomer e da invenção
de contracetivos que nos permitem ter exatamente os filhos que queremos, e não
aqueles que vão aparecendo, ocorreu uma verdadeira revolução copernicana no
conceito de família: os filhos deixaram de orbitar em torno dos pais e os pais
passaram a orbitar em torno dos filhos.
A consequência
é esta: hoje em dia, à minha volta, só encontro pais a queixar-se, mesmo que
muitas vezes não percebam exatamente porquê (eu incluído). À primeira vista, lá
está, parece um relativo absurdo histórico, sociológico e antropológico.
Estima-se que o homo sapiens exista há 200 mil anos, e alguma ideia de família,
ainda que vaga, existirá há tanto tempo quanto ele. Melhor ou pior, chegámos
desde as cavernas até aqui, e durante milénios não se vislumbrou qualquer traço
desta angústia moderna em relação à paternidade. Os filhos simplesmente
tinham-se e criavam-se. Porque é que isso deixou de chegar?
A ciência
económica talvez possa dar uma ajuda nesta resposta, se decidirmos recorrer à
velha lei da oferta e da procura: os filhos, por opção dos pais e auxílio dos contracetivos,
tornaram-se um bem raro. E, ao tornarem-se cada vez mais raros, foram-se
tornando cada vez mais preciosos. E, ao tornarem-se cada vez mais preciosos,
deixaram de ser um assunto exclusivo das mães — os pais continuaram a
produzi-los, como sempre o fizeram, mas passaram também a educá-los, como
praticamente nunca o haviam feito.
Ao mesmo tempo,
a evolução da medicina afastou o espectro da morte da criança. A morte de um filho
é hoje uma tragédia raríssima — não um acontecimento comum. Portugal, como toda
a gente sabe de já tanto ter ouvido falar nisto, é um dos países com a mais
baixa taxa de mortalidade infantil do mundo. Segundo os dados disponíveis
(números da Pordata), a mortalidade infantil caiu de 77,5 mortes por cada 1000
crianças em 1960 para 2,9 mortes por cada 1000 crianças em 2013. Estamos a
falar de uma redução de 96% no prazo de apenas meio século.
Recuando 200
anos, a única forma de aferir acerca da mortalidade infantil (óbitos até ao
primeiro ano de idade) ou juvenil (óbitos até aos sete anos) é através de
comparações entre os registos paroquiais de batismos e o número de óbitos.
Segundo um estudo realizado pelo professor Cândido dos Santos (Nota sobre a Mortalidade
Infantil nos Século XVIII e XIX), centrado em freguesias de Lisboa e do Porto,
os números são assustadores. Entre 1780 e 1789, na freguesia lisboeta de Santa
Catarina, a mortalidade infantil rondava os 125‰ e a mortalidade juvenil os
291‰. Isto significa que praticamente uma em cada três crianças morria antes de
chegar aos sete anos de idade, sobretudo de “febres” (bronquite, escarlatina),
“diarreias” (disenteria) ou “bexigas” (varíola).
Esse mesmo
estudo mostra que os números não baixam ao longo de todo o século XIX — e
quando surgiam epidemias, como a da cólera em 1833, o número de mortes era
devastador. Ora, num mundo destes, aquilo que hoje temos como a mais traumática
experiência humana — a perda de um filho — era necessariamente tida como um acontecimento
natural. Os filhos morriam — e morriam muito. E nesse sentido seria um absurdo
que a afetividade por uma criança ocupasse uma parte tão central das vidas dos
portugueses dos séculos XVIII ou XIX como ocupa na vida dos portugueses de
hoje, em pleno século XXI.
III
Isso
não significa, contudo, que questões como a educação dos filhos tenham sido
inventadas nos manuais do doutor Spock ou do doutor Brazelton. A Pediatria,
como ramo próprio da Medicina, é ainda uma criação do século XIX, e o primeiro
Hôpital des Enfants Malades abriu no distante ano de 1802, em Paris. A
preocupação com as crianças não é, obviamente, uma invenção do século XX —
aliás, toda a nossa civilização cristã é baseada na conceção de um Deus que
entregou o seu único filho, num gesto de amor radical, para a salvação dos
homens. Basta recordar o batismo de Jesus segundo a narração de Lucas:
E uma voz veio
do Céu: “Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti pus todo o Meu enlevo.”
Uma cultura que
tem no seu centro esta intimidade amorosa de pai e filho não é crível que tenha
ignorado durante séculos a riqueza de tal ligação.
O historiador
francês Philippe Ariès, numa obra fundamental acerca da história da infância —L’Enfant
et la vie familiale sous l’Ancien Régime , de 1960 —, defende que a
ideia de infância enquanto conceito etário específico e distinto da idade
adulta é algo que se impõe apenas no século XVI, a par do desenvolvimento da
esfera privada e do conceito moderno de família. Segundo Ariès, antes disso, a
criança era apenas o “dependente”, o “não-adulto”, e como tal era representado
na iconografia medieval: não como alguém que tivesse uma identidade ou sequer
uma morfologia próprias, mas apenas como um adulto miniaturizado. E, a partir
desta premissa, o historiador francês formulou a sua máxima mais conhecida: “Na
Idade Média, a ideia de infância não existia.”
Esta frase de
Ariès tem sido alvo, desde então, de numerosas críticas por parte de outros
historiadores, que a consideram abusiva e claramente exagerada. Mas seja qual
for a data em que se impôs a ideia de infância e da criança como um sujeito
capaz de ir muito além do mero “ser dependente”, aquilo que se sabe, para além
de qualquer dúvida, é que no final do século XVII a filosofia começou a
interessar-se profundamente pelo conceito de educação.
Em 1693, John
Locke publicou o influentíssimo Some
Thoughts Concerning Education , que logo nas suas linhas iniciais
afirmava: “Penso poder dizer, de todos os homens que conhecemos, que nove
partes em dez daquilo que eles são, bons ou maus, prestáveis ou não, o devem à
sua educação.” Locke generalizava assim a sua concepção da tabula rasa: não
havendo ideias inatas, todo o conhecimento tem a sua origem na experiência, na
percepção e, claro, na educação.
Setenta anos
depois, assumidamente inspirado por Locke, Jean-Jacques Rousseau foi ainda mais
longe em Émile, ou
De l’Éducation (1762),
onde encontramos a conhecida formulação de que o homem nasce bom e é a
sociedade que o corrompe — uma variação muito otimista do mito do Bom Selvagem.
Embora eu tenha em minha casa quatro provas vivas que desmentem efusivamente
tal tese, na altura Rousseau foi convincente ao ponto de a sua defesa
apaixonada de uma educação para aprimorar os costumes, plasmada em Émile, ter
sido adotada pelos revoltosos de 1789, e tomada como base de partida para o primeiro sistema nacional de educação francês.
Ainda assim,
dificilmente se pode argumentar que a importância de uma criança ou de um
filho, no final do século XVIII, se assemelhasse a qualquer coisa que possamos
encontrar nos dias de hoje. De facto, Jean-Jacques Rousseau, homem
aparentemente tão cheio de boas intenções e encantado com a ideia do “bom
selvagem”, teve cinco filhos com a jovem lavadeira Thérése Lavasseur e a nenhum
deles chegou sequer a dar um nome: todos os bebés foram abandonados à sua sorte
no Hôpital des Enfants Trouvés. Nas suas Confissões, o filósofo francês haveria
de argumentar que ter filhos era “uma inconveniência” a que não se podia
permitir. Eu, pelo meu lado, só posso confirmar que ter miúdos atrapalha a
escrita.
IV
Depois
chegou o século XIX e todas as suas revoluções: Darwin, a paixão pela biologia
e pela antropologia, o desenvolvimento extraordinário de todos os ramos da
ciência (que viria a desembocar na psicologia e em Freud), e ainda uma
revolução industrial que começou a empurrar a mulher para dentro de casa. De
facto, a ideia de que a mulher sempre viveu na cozinha a cuidar dos filhos até
ao momento em que, em meados do século XX, começou a ir bater à porta de empresas
é completamente falsa: nos tempos em que a agricultura de subsistência era o
principal modo de vida, a mulher fazia parte da força de trabalho.
Foi com a
industrialização, com o progressivo desenvolvimento da burguesia, com o
crescimento do sector terciário e com o surgimento de uma classe média onde o
ordenado do homem era suficiente para sustentar a família, que a mulher pôde
enfim dar-se ao luxo de se tornar a “fada do lar”, dedicada à casa,
especialista na ménage e concentrada na educação dos seus filhos. E como não há
mundo de fadas sem literatura a acompanhar, os livros sobre o tema cresceram e
multiplicaram-se. Havendo tempo, havendo dinheiro, havendo interesse e havendo
cada vez mais ciência, os manuais de como cuidar dos filhos começaram a aparecer.
Alguns, poucos,
ainda na transição do século XIX para o século XX, mas a maior parte deles já
bem dentro do século XX, acompanhando o desenvolvimento da medicina e a
importância crescente da figura do pediatra. Sim, este é finalmente o tempo dos
doutores Spock e Brazelton e dos seus livros que vendiam (e vendem) milhões. Só Baby and Child Care , que Benjamin
Spock lançou pela primeira vez em 1946, foi durante meio século o livro mais
vendido da América, logo a seguir à Bíblia.
E com eles tudo
mudou — a educação e o cuidado dos filhos passaram a ser encarados com
seriedade científica, a infância foi estratificada em inúmeras categorias, a
evolução dos miúdos passou a ser analisada e reanalisada mês a mês e a gravidez
analisada e reanalisada semana a semana. Com este senão: a confusão dos pais
foi aumentando de dia para dia, já que o pediatra do terceiro esquerdo poderia
perfeitamente dizer — e dizia — coisas bastante diferentes do pediatra do
segundo direito, estando eles a falar exatamente sobre o mesmo assunto.
A crescente
aplicação e preocupação dos pais em relação aos destinos dos seus filhos não os
tornou necessariamente mais informados — apenas mais angustiados. Até o
tema-fetiche de qualquer processo educativo — saber se devemos apostar em “mais
autoridade” ou em “mais afeto” na educação das crianças — foi variando
radicalmente consoante os autores e os ares dos tempos. Há um belo livro que
demonstra tudo isso, embora centrado apenas nos Estados Unidos, chamado Raising America: Experts,
Parents and a Century of Advice About Children e assinado por Ann Hulbert (e que o
próprio Brazelton considera na capa ser “a classic ”). Hulbert conclui que o
empenho de todos os envolvidos é muito estimável, mas que falha redondamente em
oferecer respostas definitivas a milhões de pais ansiosos e, com assustadora
frequência, à beira de um ataque de nervos.
A medicina fez
maravilhas ao longo dos últimos cem anos: a vida uterina é hoje conhecida até
ao mais ínfimo detalhe, a mortalidade infantil caiu a pique, a vacinação
afastou as doenças mais perigosas da infância e até já podemos ver uma cara
colorida e a três dimensões do nosso feto durante ecografias de rotina. Só que
quando os putos saltam cá para fora e a abordagem psicológica se torna mais
importante do que quaisquer problemas físicos, as dúvidas não só continuam,
como as inseguranças dos pais aumentaram, em vez de diminuírem.
Hulbert resume
a coisa citando o pós-título de um artigo publicado no New York Times sobre os desafios da
maternidade, esclarecedoramente intitulado “Mothers can’t win” — “As mães não
podem ganhar”: “Trabalho ou casa? Peito ou biberão? Bater ou mimar? O que quer
que escolham, elas vão sentir-se mal.” Sim, as mulheres vão sentir-se mal, e
todos nós já sabemos que a vida das mães é tramada — há um movimento feminista
que há décadas não diz outra coisa. Mas permitam-me, por um momento,
interromper a descrição do horror da vida feminina para fazer a pergunta que,
por razões óbvias, mais me interessa: e a vida dos pais?
V
Sim,
a vida dos pais. A nossa vida. Nós. Homens. Gajos. Os tipos que se riem com as
piadas do Louis C.K. e o Go
the Fuck to Sleep de Adam Mansbach. Por que raio é que tão pouca gente
pensa nas nossas naturalíssimas crises existenciais perante a total
reconfiguração da lógica familiar contemporânea? Porque é que tanta gente tem
dificuldade em perceber que nós partilhamos as mesmas angústias das mães (ou
pior: outras angústias, menos estudadas, já que a academia e o jornalismo lhes
liga pouco) e que, da mesma forma que o mundo das mulheres mudou radicalmente
quando elas saíram de casa, o mundo dos homens mudou radicalmente quando eles
entraram em casa?
Atenção: não
entraram em casa para se estenderem no sofá e pedir à esposa para ir buscar uma
cerveja ao frigorífico. Entraram em casa para dar banho aos filhos, para dar de
jantar aos filhos, para estudar com os filhos, para deitar os filhos, para
executar todas aquelas tarefas que durante 200 mil anos, desde o aparecimento
do tal homo sapiens, nunca haviam sido tarefa sua. Nós, homens, que estamos
geneticamente programados para caçar mamutes, acabámos elefantes no meio da
sala — e ninguém parece reparar em nós.
São muito
poucos — escandalosamente poucos — os estudos que se preocupam em analisar o
papel do pai na família moderna. Em 2001, Leonor Segurado Balancho publicou em
Portugal uma tese de mestrado intitulada O Novo
Papel do Pai na Educação dos Filhos: Co-parentalidade e Diferenciação ,
à qual se seguiu, dois anos depois, um pequeno livro na Editorial Presença
chamado Ser Pai,
Hoje . O facto de esse livro já ir na sua nona edição confirma que
ser pai hoje é mesmo um problema.
Desde logo, há
a questão básica do tempo que o pai passa dentro de casa. Informa a autora:
“Nos anos 60,
nos países ocidentais, os pais das crianças com menos de cinco anos passavam em
média, diariamente, 12 minutos com elas; em meados dos anos 70, esse número
aumentava para 17 minutos, e estava em 43 minutos diários nos anos 80. Os
valores mais recentes mostram que o nível de interação se elevava, nos finais
dos anos 90, a cerca de 2-3 horas por dia, correspondentes a dois quintos do
tempo passado pelas mães.”
O resultado
dessa presença crescente é a alteração do papel do pai, de disciplinador a
cuidador, de simples ganha-pão familiar a fonte indispensável de afetividade. O
livro de Leonor Segurado Balancho é sobretudo didático e, em certo sentido,
paternalista: ela identifica o papel eficaz do pai moderno e estimula o macho
ibérico a adaptar-se a ele. Mas o mais interessante não é isso — é identificar
que impactos essa presença causa nos pais e a forma como o novo papel doméstico
modifica as suas próprias expectativas de vida.
Para
sabermos isso, temos de viajar novamente até à América, e em particular até ao
Center of Work & Family do Boston Colegge (uma universidade privada
propriedade dos jesuítas), departamento onde em 2009 começou a ser realizado o
pioneiro estudo The New
Dad , que logo na primeira frase da introdução clarifica aquilo que
realmente está em causa: “Nos lares da América, os pais iniciaram uma revolução
silenciosa.” Finalmente, alguém nos dá a devida importância. Até porque não foi
só nos lares da América.
VI
Aquilo
que se pode ler acerca das motivações do estudo The New Dad é música para os ouvidos de um
pai cansado e farto de protestar por atenção:
“Assim como tem
sido importante avaliar os desafios enfrentados pelas mães trabalhadoras, é
importante avaliar os desafios com que os pais trabalhadores se confrontam e refletir
nas mudanças significativas em termos de atitudes e expectativas que têm
ocorrido. A nossa pesquisa mostra que o novo pai contradiz os velhos
estereótipos do pai workaholic e ausente, somente focado na sua carreira, cujo
contributo para a família se limita ao de ganha-pão e cujo sucesso é definido
exclusivamente pelas promoções no trabalho. Enquanto os programas de televisão
e os media continuam a insistir em catalogar os pais como ineptos e
desajeitados cuidadores, desligados das preocupações do dia-a-dia das suas
famílias, o nosso trabalho sugere algo completamente diferente.”
Aleluia,
aleluia. E o que esse trabalho sugere mostra bem o desafio colossal da
paternidade contemporânea. Mais de 70% dos cerca de dois mil pais inquiridos
consideram ser seu dever “simultaneamente cuidar dos filhos e ganhar dinheiro
para os sustentar”. E quando questionados sobre quais são as características de
um bom pai, aquelas que aparecem destacadas são estas: “providenciar amor e
suporte emocional” e “estar presente e envolvido na vida dos seus filhos”.
Parece ótimo, correto?
Correto. O problema está em como compatibilizar este sentimento século XXI com
a manutenção das mesmas ambições profissionais de 1980. E é aí que o homo familiaris de 2014 frequentemente soçobra. O
estudo chama a esta atitude “myth of
having it all ” — o desejo de os novos pais terem tudo ou, à boa
maneira portuguesa, quererem ficar com o bolo e comê-lo. Os pais desejam estar
mais tempo em casa e 86% concordam com a afirmação “Os meus filhos são a grande
prioridade da minha vida”, só que 76% ambicionam ao mesmo tempo subir na
hierarquia da sua empresa. Como compatibilizar uma coisa com a outra? Não é
fácil.
É tão difícil,
aliás, que a consequência disso é existir, em simultâneo, uma enorme
disparidade entre o tempo que os pais gostariam de dedicar à família e o tempo
que efetivamente dedicam. São pais em permanente falha: quando estão em casa,
sentem que deveriam estar a dedicar mais tempo ao trabalho; quando estão no
trabalho, sentem que deveriam estar mais tempo em casa. (Isto para não falar no
tempo em que desejam apenas estar sozinhos.)
Este sentimento
não é exclusivo dos homens, obviamente — mas, ao contrário do que acontecia há
30 anos, é hoje em dia muito mais acentuado nos homens do que nas mulheres. A
percentagem de progenitores que assume sentir um intenso conflito entre vida e
trabalho é atualmente de 60% para os pais e de 45% para as mães. Em 1977,
somente 35% dos pais assumiam esse conflito, contra 40% das mães. Ambas as
percentagens subiram. Mas a dos pais subiu muitíssimo mais. A nossa consciência
está a dar cabo de nós. Não espanta, por isso, que um dos estudos no âmbito do
programaThe New Dad tenha
como subtítulo Caring,
Committed and Conflicted — Cuidador, Comprometido e em Conflito . Os
três C que resumem na perfeição o imbróglio em que os novos pais estão
enfiados.
Falo por mim.
Os famosos versos de António Variações — “Estou bem/ Aonde eu não estou/
Porque eu só quero ir/ Aonde eu não vou” — são o hino da minha vida. E a isso
acrescento esta queixa: enquanto a vida da mãe é frequentemente um inferno, mas
toda a gente sabe, a vida do pai é um inferno idêntico, mas parece que ninguém
liga. Nós, homens, continuamos a levar com o preconceito generalizado de não
fazermos nenhum em casa — o que poderia ser absolutamente verdade há 30 ou 40
anos, mas é absolutamente falso em 2014.
Começam a
perceber porque é que precisamos tanto das piadas de Louis C.K. (e porque é que
Louis C.K. precisa tanto de fazer aquelas piadas)? É simples: porque precisamos
de alguém que nos compreenda. Precisamos de nos rir das frustrações constantes
do dia-a-dia. Precisamos de — lá está — desabafar. Não é que não adoremos os
nossos filhos. Claro que adoramos os nossos filhos. Toda a gente adora os
filhos. Só que frequentemente sentimos que é uma coisa tipo síndrome de
Estocolmo: estamos apaixonados pelos nossos raptores.
VII
Significa
isto que não há esperança? Tem de haver esperança — ninguém aprecia finais
infelizes, nem em filmes, nem em artigos de jornal. Deixem-me então convocar,
em meu auxílio, Jennifer Senior, que transformou brilhantemente em livro uma
intuição muito simples: andamos há tanto tempo obcecados com o impacto que os
pais têm nas crianças, mas esquecemo-nos de analisar decentemente o impacto que
as crianças têm nos pais. E então ela foi analisar. O resultado chama-se All Joy and No Fun: The Paradox of Modern Parenthood . O livro tem tido críticas
entusiásticas e um imenso sucesso nos Estados Unidos. É inteiramente merecido.
Jennifer Senior
faz no seu livro o que eu tentei modestamente fazer neste artigo: não deixa
pedra por levantar na descrição do impacto devastador que as
crianças têm nos pais contemporâneos. Ela cita um estudo levado a cabo em 2004,
no Texas, por cinco investigadores (incluindo o prémio Nobel Daniel Kahneman da
Economia, autor do popular Pensar,
Depressa e Devagar ), que entrevistaram 909 mulheres
perguntando-lhes quais eram as actividades que lhes davam maior prazer. Num
total de 19 actividades, tomar conta das crianças ficou em 16.º. Atrás de ver
televisão. De cozinhar. Ou de limpar a casa.
A grande
questão, que ouço ser colocada do outro lado do papel desde o início do meu
texto, é esta: então por que raio é que se tem filhos? E, no meu atípico caso,
logo quatro de uma vez (segundo o INE, só 2% das famílias portuguesas são
constituídas por seis membros ou mais). Senior responde a esta contradição com
uma belíssima citação de Os Quatro
Amores , de C.S. Lewis (a tradução é minha):
“Nós
alimentamos as crianças para que em breve elas sejam capazes de se alimentar
sozinhas; nós ensinamo-las para que em breve não necessitem dos nossos
ensinamentos. Uma grande exigência é colocada sobre o Amor-Dádiva [“Gift-Love ”,
no original, segundo Lewis, o tipo de amor característico da relação
pai-filho]. Ele tem de trabalhar no sentido da sua própria abdicação.”
É uma
extraordinária definição daquilo a que eu chamei, sem a sensibilidade nem a
sapiência de C.S. Lewis, “síndrome de Estocolmo”: estamos apaixonados pelos
nossos raptores, mas queremos continuar a ser raptados por eles e não
imaginamos o que seria a nossa vida sem esse permanente rapto. Porque,
curiosamente, quando os pais são questionados, não sobre o seu presente
afobado, mas sobre quais as suas experiências passadas que foram para eles mais
recompensadoras, os filhos estão invariavelmente presentes.
Isso tem que
ver com uma diferença fundamental na percepção humana que o já citado Daniel
Kahneman, em Pensar,
Depressa e Devagar (o
livro está traduzido em português pela Temas e Debates/ Círculo dos
Leitores), classifica como experiencing
self (o “eu da
experiência”) eremembering self (o
“eu da memória”). Num resumo apressado, a sua tese é esta: existe uma distância
substancial entre o modo como experienciamos algo e o modo como nos recordamos
posteriormente dessa experiência.
Quem tem filhos
sabe isto de cor. O que foi uma pequena tragédia no presente (uma refeição em
que tudo corre mal, por exemplo) transforma-se meses depois num momento humorístico
ao ser recordado em família. É como nas fotografias: a memória ajuda-nos a
sorrir e a mostrar os dentes, ainda que no momento em que a máquina fez clique
toda a gente pudesse estar farta uma da outra e a portar-se mal.
Com frequência,
nós não suportamos o nosso presente como pais, mas sabemos que iremos ter
saudades dele no futuro. Posso garantir que já foram centenas as pessoas que,
diante dos meus recorrentes protestos paternos (eles são mesmo muito
recorrentes), me disseram: “Você ainda vai ter saudades disto.” Eu respondo
sempre, muito convicto: “Ai não vou, não.” Mas vou, claro. Está escrito em
todos os livros.
Ser pai,
portanto, é insuportável e cada vez mais difícil, enquanto ser solteiro é cada
vez mais comum e divertido. Mas como Émile Durkheim, pai da Sociologia,
descobriu no distante ano de 1897 ao escrever O Suicídio, as pessoas casadas
matam-se menos do que as pessoas solteiras, as pessoas viúvas matam-se mais do
que as pessoas casadas mas menos do que as solteiras, e as pessoas com filhos
matam-se menos do que todas as outras. Quando um casal tem filhos, diz
Durkheim, o “coeficiente de preservação” praticamente duplica. Segundo ele,
existe uma relação muito forte entre a formação da família e a preservação da
vida.
Muita da
angústia moderna terá a ver, a par de todas as mudanças sociológicas, com o
facto de o conceito de “prazer” ter ganho demasiado território ao conceito de
“dever”. Mas o conceito de “dever”, como prova Durkheim, está lá, bem enfiado
no nosso património genético, e merece ser recuperado, a bem da nossa sanidade
mental. Se nós pararmos de acreditar que ter filhos é suposto ser uma coisa
divertida, e passarmos a aceitar antes que é uma coisa que deve ser feita, e
que nos devolverá no futuro, com juros, aquilo que nos tira no presente, talvez
o próprio presente se torne mais fácil de suportar.
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